quinta-feira, 24 de março de 2022

O silêncio de Aninha

Aninha andava muito aborrecida ultimamente. Não bastasse o recesso forçado de quase dois anos, motivado pela pandemia de Covid, o trabalho na secretaria de uma escola não era bem o que Aninha poderia chamar de emprego dos seus sonhos.

A atividade burocrática de conferir, organizar e arquivar a documentação de alunos era por demais monótono e repetitivo, muito diferente do que Aninha sonhara, após ter se formado com brilhantismo na faculdade.

Descendente de italianos, Aninha sentia muita falta daquele ambiente alegre, agitado, quase festivo, comum nas famílias oriundas da Bota.
Principalmente no horário do almoço, quando Aninha fazia suas refeições no próprio local de trabalho, praticamente sozinha em virtude da escala de horários. Não adiantava muito sua marmita, carinhosamente preparada por sua mãe, ser um desfile de iguarias e delícias da rica e variada culinária italiana. 

O fato de almoçar em silêncio, num ambiente restrito e pouco inspirador levava Aninha a comer sem mesmo prestar muita atenção ao cardápio. Fazia do celular seu colega de mesa, interessada muito mais em ouvir as vozes das pessoas do que propriamente assimilar o conteúdo da programação.

A falta de ter com quem conversar levava Aninha a extremos. Se no metrô lotado alguém fosse passar por ela, com o  risco de um esbarrão, Aninha não se conformava em ouvir apenas um "Lecença!", ao invés de um "A senhorita poderia me dar licença?". Seria uma forma de ao menos responder "Pois não, tenha a bondade..."

Os únicos momentos do dia em que Aninha recuperava um pouco de sua alegria aconteciam quando abria a porta e adentrava o ambiente de sua casa. Seus cachorrinhos de estimação a recebiam com tanta alegria e efusiva animação, que Aninha ficava emocionada diante tanta demonstração de amor por ela. E mesmo trocando as palavras por latidos, Aninha com eles dialogava através de seus próprios olhares. 

Tais manifestações de carinho e afeto só diminuiam quando após muitas festinhas e refeições em conjunto todos se aninhavam e, bem juntinhos, se abrigavam pra dormirem na mesma cama, juntos com Aninha. E assim os dias iam passando, praticamente sem  novidades, até que Aninha começou a sentir um certo desconforto com suas roupas.

Engraçado, dizia ela. Será que essas roupas que eu gosto tanto estão encolhe ndo ?!? E assim, aos poucos, Aninha foi percebendo que o problema não estava nas roupas, mas nela própria.

Meu Deus, não é possivel, não são as roupas que estão diminuindo, sou eu que estou aumentando ! Agora eu entendo porque a vendedora da loja, ao me atender disse que aquele modelito que eu tanto adorei não estava mais disponível, que só restavam  nos tamanhos P e M, não havia mais do meu tamanho, constatou Aninha.

Isso posto, isso feito : naquele mesmo dia Aninha começou o mais severo regime que fizera até então. Os resultados logo fizeram-se sentir e em poucas semanas Aninha já estava bem mais à vontade em suas roupas. Mesmo assim, decidiu voltar à loja e renovar algumas peças de seu guarda roupa.

Após provar e escolher vários modelos, Aninha ouviu da vendedora um comentário que a deixou em dúvida se fizera ou não um bom negócio. "Você agora está parecendo Miss Brasil, tá elegante que só !".

Aninha foi para casa refletindo a respeito e acabou por concluir que bastava ser magra e elegante para se igualar a uma miss.Que não havia necessidade ne demonstrar qualquer conteúdo, então era só a aparência que contava ?
Inconformada com a idéia, Aninha decidiu mudar o foco de suas reflexões, buscando soluções mais próximas e imediatas para o seu problema, que era ter alguém com quem pudesse conversar, trocar impressões, fazer confidências.

Lembrou-se então de uma pessoa que havia conhecido há muitos anos atrás, quando era ainda uma adolescente e com a qual rivera algo pouco mais do que um rápido e ingênuo flerte, que não prosperou somente pelo fato desse prospect ser um fumante inveterado, hábito que Aninha considerava abominável.

Renato era o nome dele. Aninha não perdeu tempo e depois de alguns dias já tinha em mãos todos os dados de Renato, sabendo que ele estava livre, depois de um casamento mal sucedido. Que morava numa pequena cidade do interior, onde montara um negócio de peças para caminhões e que vivera alguns maus bocados após ter sofrido um acidente de moto.

Sem perda de tempo, Aninha descobriu o endereço de Renato numa rede social, iniciando-se assim uma intensa troca de mensagens entre ambos, levando Aninha a acreditar que finalmente seu problema de solidão houvera acabado.
Foi assim que em pouco tempo o contato virtual não era mais suficiente. Especialmente para Aninha, que ansiava por ouvir seu nome pronunciado com carinho por uma pessoa querida.

Chegou o momento que o contato pessoal se tornara inevitável. Aninha, não cabendo em si de tanta ansiedade, vestiu sua melhor roupa, calçou sua sandália mais bonita, caprichou na maquiagem e lá foi ela encontrar-se e rever aquele seu quase amor da adolescência.

O encontro, marcado em um elegante shopping da capital, previa um jantar todo especial, seguido de muita conversa e quem sabe um final de noite romântico.
Ao ver Renato chegando, o coração de Aninha parecia que iria saltar do peito, tal era a sua emoção. Os cumprimentos envolveram os protocolares abraços e beijinhos na face.

Até então Aninha não ouvira sequer uma palavra proferida por Renato. Sua surpresa foi aumentando e não entendeu porque Renato colocou a mão por dentro da blusa e de lá retirou um tablet, onde durante alguns segundos pareceu digitar alguma coisa.
Ao terminar a operação, estendeu o aparelho em direção a Aninha, que estupefata leu a seguinte mensagem : "Querida Ana, como vc sabe sofri há algum tempo um grave acidente de moto. Estou totalmente recuperado fisicamente, exceto em um ponto : como a região mais afetada foi o meu pescoço, a garganta foi a área mais prejudicada, de maneira que perdi completamente a fala. Isso mesmo, Ana. 
 Hoje sou completamente mudo, incapaz de emitir qualquer tipo de som. Espero que entenda, não lhe contei nada antes para que você se lembrasse de mim como eu era nos nossos bons tempos..."

Creio que todos devem conhecer uma música, onde a certa altura a letra decreta : "meu mundo caiu..." Dali em diante essa passou a ser a trilha sonora da vida de Aninha.

Moral da história :
Se calar é prata, nem sempre o falar é de ouro...

O DESFILE

 Aninha nunca foi muito chegada em posar para fotografias. Até naquelas, tiradas nas festinhas infantis pra serem guardadas como lembrança - e que depois de algum tempo ninguém lembra mais onde guardou - o que se via era uma menina séria, de semblante hostil e carregado, deixando revelada de maneira inequivoca sua contrariedade e insatisfação diante daquele ritual, digamos assim...fotográfico !

. "Dá um sorrisinho pra tia Orieta, Aninha !"..."O fio Pasquale quer te ver alegre, Aninha!". Mas qual o quê, para cada pedido que lhe era feito, maior o descontentamento revelado na expressão da garota. Festejos escolares, passeios com as amigas, formaturas, férias, em todas as ocasiões registradas em fotos, o que mais chamava a atenção de todos era o olhar indevassável e contrariado de Aninha. 

Embora tivesse um invejável currículo acadêmico, a idade adulta chegou para Aninha, com discretíssimas ofertas e  oportunidades de trabalho. Nem mesmo a ótima aparência e beleza física, valorizada pela sua privilegiada ascendência européia, asseguravam alguma vantagem quando a disputa colocava Aninha frente a frente com as demais concorrentes às vagas que surgiam. 

Afetado pelo interminável período da pandemia do início dos anos 20, o mercado de trabalho resumia-se a esporádicos eventos de natureza promocional, envolvendo  contratos de prestação temporária de serviços. Previsto desde o início do ano, o desfile da linha verão dos maiôs Overmarine representava pra muita gente a diferença entre um ano bem remunerado e um de vacas magras. 

Assim, quando recebeu a confirmação de que seu nome estava entre as candidatas selecionadas para o desfile, Aninha não cabia em si de alegria, quase sem saber como controlar sua emoção, misto de euforia, alívio e felicidade. Por isso, até chegar o dia do tão sonhado e esperado evento, o pensamento mais recorrente de Aninha era que suas contas estariam todas em dia, seu nome estaria em evidência no mercado e que, na certa, novos convites para trabalhos não iriam demorar pra aparecer. 

Finalmente chega o grande dia ! E no meio da azáfama tumultuada que é a preparação para um desfile de moda, um pensamento súbito tomou conta da mente de Aninha : "Será que vou precisar ficar sorrindo durante meu trajeto na passarela ?!? Ai meu Deus, vai ter uma cacetada de gente fotografando, filmando, gravando, focando meu rosto, mostrando minha cara ! E eu não suporto isso, de ficar com cara de besta, mostrando os dentes !"...

Com isso, caro leitor, o estrago já estava feito. Dividindo o espaço do camarim com todas as outras modelos e um batalhão de profissionas da produção, a tensão começou a tomar conta de Aninha. E enquanto era maquiada, penteada, ajeitada , arrumada e vestida com o seu maiô Overmarine Top Style, Aninha em voz baixa, quase sussurante, arriscou-se a chamar a principal produtora e perguntar-lhe : " Durante o desfile a gente vai ser obrigada a ficar sorrindo ? "

E sem sequer desviar os olhos e a atenção do que estava fazendo, a produtora respondeu assim para Aninha : "Minha filha, você faz o que quiser com a sua carinha ! Aqui o que interessa é o restante do seu corpo e o que isso é capaz de fazer pra ajudar a vender mais essa droga de maiô!"

Não era bem o que Aninha esperava ouvir mas até que ficou mais conformada. Seu sorriso secreto e misterioso, bem como e expressão de absoluta contrariedade estariam, ao menos por enquanto, preservados de olhares mais curiosos...

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Do princípio ao fim...

 Quando a gente menos percebe o tempo passou, os anos correram com uma celeridade absurda e os dias, então, sucederam-se numa velocidade vertiginosa.

Ocupados demais com os afazeres e compromissos, boa parte da vida escapou por entre os dedos, os mesmos dedos que mês após mês foram arrancando uma a uma as páginas do calendário, como se o controle da existência se resumisse no findar dos números da folhinha, que assinalam o transcurso do inevitável transcurso.

Mesmo os momentos de lazer, de alegria e descontração ficaram espremidos entre os dias e as horas, sem que se desse conta do quanto eles seriam preciosos não como lembranças, mas por experiências efetivamente vividas.

E assim o tempo foi transcorrendo, sem que se desse conta, de sua relevância, até que os primeiros sinais começaram a aparecer, sinais esses evidenciados pelo sistema mais preciso e precioso, ao qual poucos se dignam a darlhe a atenção devida.

Estou falando do nosso corpo, que à semelhança de uma máquina estupendamente construída não tem garantia de vida eterna e começa a apresentar desgastes a comprometer seu desempenho e funcionamento.

Após sete décadas de existência, tenho plena consciência de estar mais próximo do fim do que do começo. A sequência de alterações e distúrbios torna o existir um fardo cada vez mais pesado, exigindo um esforço quase impossível de ser realizado.

Todavia, o transtorno maior não é aquele ao qual é submetido o já fragilizado corpo físico. O que ocorre no plano mental passa a ser o grande suplício, pois se desconhece de que forma o fim se dará. Será por acaso muito doloroso ? Quanto tempo irá durar ? Haverá alguém a nos fazer companhia nesse momento ? 

Infelizmente são perguntas sem respostas, restando apenas o martírio da incógnita, que jamais será esclarecida até o findar do universo, fato que nós, simples mortais, jamais teremos compreensão...