quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Um pequeno defeito

Se tem um sujeito pacato, tranquilo, boa gente mesmo, esse cara é o Evilásio. No prédio onde trabalha há 16 anos como porteiro, não tem uma pessoa que tenha um tiquinho assim pra falar mal do Evilásio. Sempre gentil e solícito, conhece todos os moradores pelo nome, incluindo aí as crianças e até mesmo os visitantes mais frequentes.
Em casa, junto da família, Evilásio não é diferente: marido exemplar, pai amoroso de duas filhas, ótimo vizinho, tudo nele é modelo do cidadão mais que perfeito. Aos domingos, no seu dia de folga na semana, Evilásio cumpre religiosamente o mesmo ritual: sai de casa às 7 da manhã, rumo à feira livre do bairro, voltando por volta das 10, com duas sacolas cheias de verduras, frutas e legumes. Faz isso há décadas, cumprindo o que para ele deve representar o papel do provedor do lar, proporcionando à mulher e às filhas o melhor que lhe seja possível.
À tarde, ali pelas 5 horas, Evilásio veste um dos seus habituais ternos, o cinza ou o marrom, e, depois de lustrar seu melhor sapato social, empunha sua Bíblia e caminha a passos apressados, rumo à igreja pentecostal onde é um dos mais assíduos e bem quistos frequentadores. Chega em casa por volta das 9 da noite, com a alma leve, geralmente assobiando o último hino do culto.
E assim o Evilásio foi levando a sua vidinha tranquila, sem novidades ou sobressaltos, até aquela fatídica terça-feira, quando uma tontura, seguida de uma pontada na cabeça, o obrigaram a pedir ao Sr. Rodolfo, síndico do prédio, para sair mais cedo do trabalho. Como essa era a terceira vez que o Evilásio fazia tal pedido - as outras duas foram por ocasião do nascimento das duas filhas, hoje duas bonitas moças - o Sr. Rodolfo não fez objeção para que o Evilásio saísse do seu posto, com a recomendação expressa de que fosse imediatamente procurar um médico.
Evilásio chegou em casa, tomou uma chuveirada rápida e acompanhado da mulher e uma das filhas rumou direto para o hospital do seu convênio. Lá, após uma série de exames que se estenderam até altas horas da madrugada, veio o diagnóstico que acertou o Evilásio como bomba: um tumor de tamanho considerável havia se formado em seu cérebro e a necessidade de uma cirurgia urgente já se fazia necessária, por uma questão de pura sobrevivência. Todos os anjos disseram amém e na tarde daquele mesmo dia o Evilásio foi encaminhado para o centro cirúrgico e submetido à operação salvadora, procedimento que se estendeu por mais de 5 horas.
Depois de três longos dias ouvindo os apitos, guinchos e assobios dos aparelhos do CTI, Evilásio foi transferido para um leito na enfermaria, ao lado de três outros pacientes. Assim que apresentou alguma melhora, entre aliviado e contente por estar vivo depois de um susto tão grande, Evilásio tratou logo de fazer o que de melhor ele era capaz, ou seja, transformar os novos colegas em amigos. E assim foi, com o Evilásio logo conquistando a simpatia geral: pacientes, médicos, enfermeiras e até o pessoal da limpeza, todos eram unânimes em considerar o Evilásio como exemplo do super gente fina.
E foi justamente por isso que certa manhã o Evilásio achou muito estranho que estivessem removendo seu leito para uma outra ala, onde foi deixado sozinho, acompanhado apenas dos aparelhos e instrumentos de monitoração médica. Teve que esperar até o horário de visitas à tarde, quando por intermédio de sua mulher ficou sabendo que sua remoção ocorrera por uma razão absolutamente inusitada: ninguém mais suportava o ronco do Evilásio quando ele caía num sono mais pesado.
Assim, por vontade e solicitação da maioria, houve o pedido de sua remoção, aceito imediatamente pela administração do hospital, cuja sala ficava defronte à enfermaria onde o paciente Evilásio dos Santos estivera internado nas últimas semanas.
Típico caso de rejeição social, por razões mecânico-físico-biológicas. Tem hora que muita democracia é mesmo uma merda...