Som ambiente. Sala de espera de uma unidade do SUS. Duas senhoras idosas, simpes, sotaque interiorano conversando.
- Pois é o que estou dizendo pra senhora, D. Josefa. Paqueles
cafundó é que eu não volto mais. Deus me livre e guarde de ir de novo pra
aquele matagal...
- A senhora tá mais do que certa, D. Zenóbia!
Interior não é lugar de gente. Só mato, bicho, doença, Deus que me livre e
guarde...
- Meu marido vive me enchendo as paciência,
querendo voltar pra lá, que ele não tem jeito de se acostumar aqui na cidade
grande. Eu finjo que nem é comigo, tá é doido...
- Comigo é mais ou menos a mesma coisa, só que da
parte dos filhos, né? Falam que a vida do campo é muito melhor, que a gente vive com mais
saúde e mais sossêgo...
- Ah, não! A começar daqueles brejo, tudo cheio de
cobra e sapo, Ave Maria! Chega de noite vem tudo pulando pra dentro de casa,
nas pernas da gente...
- E as muriçoca, então? Quando vai escurecendo é
aquele inferno, a gente que não trata de fechar tudo quanto é porta e janela
pra ver se consegue dormir de noite...
- Inda mais agora, com essas praga de dengue. Minha
comadre que ainda mora no interior, a D. Zabé, ficou viúva, acredita? Só por
causa de um pernilongo que picou o marido dela. Ficou bem uns vinte dias
sofrendo, o coitado. Um febrão danado, não teve nada que desse jeito, até que
começou a verter sangue pelas venta, vomitando e ó, bateu com as caçuleta...
- Pra senhora ver, né D. Zenóbia. Tudo por causa de
um mardito pernilongo...
- Isso mesmo, D. Josefa, um homem forte,
trabalhador, morrer de um jeito assim tão besta...
- É, mas como já dizia os antigo, pra morrer basta
tá vivo, né?
- Então, menina, tá sabendo que eu também quase fui
pra terra dos pé junto?
- A senhora, D. Zenóbia??? Pois num me diga uma
coisa dessas! Como foi que isso se assucedeu, mulher de Deus...
- Pra senhora ver, D. Josefa, e tudo por conta de
um outro tipo de bicho lá do interior...
- Verdade? ? ? Mas que raio de bicho foi esse que
pegou a senhora de jeito?
- Pois então. Fui visitar o sítio do meu irmão, lá
em Santa Cruz do Barro Preto. Ele tem
umas cabecinhas de gado leiteiro, que é de onde ele tira o sustento dele
e da família. Também tem uma eguinha alazã, que ele usa pra puxar a carroça que
leva o leite todo dia pra cooperativa.
- Sei como é, meu sogro também trabalhou nessa lida
a vida inteira...
- Pois então. Nessa de ir ver ele, a mulher e a
filha deles tirar leite no curral, não é que eu peguei um carrapato estrela na
perna, bem aqui atrás do joelho?
- Hum, hum, hum! Mas a senhora não sentiu nada, na
hora que o bicho garrou na vossa perna?
- Nadica de nada, D. Josefa! Pois o bicho é um
titiquinho assim, nem dá pra enxergar direito. Só sei que no outro dia começou
uma coceira, uma coceira danada e um vermelhidão. Até pensei que fosse alguma
formiga que tivesse me ferroado...
- Sei como é que é, coça que é uma praga!...
- Então, minha amiga. Essa coçeira foi aumentando,
aumentando, aumentando e num tinha nada que desse jeito. Passei
"árco", vinagre, cânfora, até "mér de abeia" com banha de
galinha e nada...
- Misericórdia! Eu calculo o seu desespero, D.
Zenóbia...
- Era dia e noite, nem meu serviço de casa dava pra
fazer direito. Começei a ter uma febre que não passava, suava frio, tinha uma
tremedeira, deu até íngua na minha perna...
- Coitada! E como a senhora resolveu esse
transtorno, D. Zenóbia?
- Pois então, D. Josefa. Meu filho teve que me
buscar em casa e levar pro Hospital do Tocura. Tive que ficar internada cinco
dias, a senhora acredita? O médico disse que era uma febre de carrapato
estrela, se não trata logo pode até matar...
- Deus o livre e guarde! Ainda bem que a senhora
conseguiu se tratar em tempo, né?
- Graças a Deus! Por isso que pra mim chega de
mato, Cruz Credo! Êpa, olha lá, tão chamando o meu nome. Fica com Deus, viu
D. Josefa? Vai lá em casa, a gente bate um bolinho pra comer com café coado na
hora...
- Vou sim, D. Zenóbia. E vou cedo, porque quando a
gente se encontra e garra a prosear o tempo passa que a gente nem vê, né mesmo?
- Até mais ver, dá lembrança pro Seu Manézinho, faz
tempo que não vejo ele...
- Dou sim, inté mais, D. Zenóbia...
Voz da recepcionista, carregada de impaciência, ecoa o chamado pelo corredor da unidade:
- Zenóbia Selofrênia! Não tá escutando, não? Terceira porta à
direita, consultório cinco...