sexta-feira, 31 de maio de 2013

Sorte de apostador

Há um bom tempo o seu Manoel andava preocupado sobre o que iria fazer da vida depois que se aposentasse. Funcionário exemplar, na empresa desde o início das atividades, seu Manoel era o tipo boa gente, querido por todos, bem tiozão, papo alegre, que só tinha um ponto fraco: era viciado em corrida de cavalo.
De segunda a sexta-feira almoçava em menos de vinte minutos, só pra poder dedicar o resto de tempinho livre a analisar a página de turfe do jornal, visando identificar os favoritos e as barbadas. Quando chegava o fim de semana, caprichava no visual e lá ia ele, todo garboso e perfumado para a Cidade Jardim. Essa era a sua rotina aos sábados e domingos e, quando chegava ao trabalho na segunda-feira, era visível sua satisfação ao contar para todos da seção que havia acertado alguma dupla ou placê. 
Mas ultimamente o seu Manoel andava meio caladão, macambúzio, assombrado pelo fantasma da aposentadoria. Sabia que por melhor que fosse o benefício, não seria suficiente para manter o seu padrão financeiro. Seria obrigado a conter as despesas e deixar de fazer aquilo que mais gostava, que era apostar nos cavalinhos, como costumava carinhosamente dizer.
Mas enfim, o dia temido chegou. E lá foi o seu Manoel, acompanhado de um funcionario do Departamento Pessoal da empresa, fazer a homologação na sede do sindicato. Quem viu o seu Manoel saindo da empresa, conta que ele parecia estar sendo conduzido ao cadafalso, tamanha era a sua tristeza e abatimento.
Passados uns seis meses, eis que recebemos a visita do seu Manoel. Contou-nos que estava bem, levando a vida conforme podia e que agora estava se recuperando de um grande susto por que passara, assim que havia deixado a firma e sacado o seu Fundo de Garantia. Todos pensaram que ele tinha sido vítima de algum golpe ou problema de saúde, mas não fora isso que acontecera.
Aí nos disse o seu Manoel que dias depois de receber seus direitos trabalhistas, teve a ideia de vender laticínios no varejo. Comprou uma Kombi branca usada e ao menos uma vez por semana ia até a região do sul de Minas, ande lotava a perua de queijos e trazia para vender em São Paulo, tudo sem nota fiscal, é claro. Para a mercadoria não deteriorar, não perder tempo, nem gastar dinheiro com pedágios, mandou pintar uma cruz vermelha na porta da Kombi e, usando um avental e uma touca brancos, passava direto pelos vários postos de fiscalização, como se fosse uma ambulância transportando algum paciente para o hospital.
Tudo ia dando certo para o seu Manoel, até que um dia, logo depois de passar por um comando da Polícia Rodoviária, percebeu que atrás dele havia saído uma viatura, com sirene ligada e que, após alguns minutos de perseguição, fazia sinal para que ele parasse. Seu Manoel, nervoso, encostou a Kombi e querendo parecer honesto, foi logo dizendo para o policial:
- O senhor está certo, cumprindo a sua função e eu reconheço que estou em situação irregular. Portanto, o senhor pode fazer o que tem de ser feito, eu assumo todas as consequências. Quando se está errado, o melhor negócio é reconhecer logo...
O policial pega os documentos do seu Manoel, examina, dá uma volta ao redor da Kombi. Volta, olha fixamente para o seu Manoel e diz:
- Muito bem, meu amigo, hoje eu só vou te multar. Mas da próxima vez que você passar por aqui com essa ambulância sem sirene eu vou te multar e apreender o veículo, tá entendido?
Seu Manoel disse que deve ter respondido "sim" para dentro. Liberado pelo patrulheiro, voltou rapidinho para São Paulo. Ainda a tempo de pegar a programação turfística daquele sábado à tarde...

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O cambono e o corno


 - Por favor Sr. Murilo, sente-se aqui e me conte o que exatamente aconteceu... Foi assim, sentado diante do delegado de plantão que Murilo começou seu relato do episódio envolvendo ele próprio,  Anabela, sua esposa e Joaquinzão, cambono do Centro Espírita Caboclo Sete Folhas.
Há algum tempo que Murilo e Anabela vinha frequentando aquele estabelecimento espírita. Fascinado pela energia, vigor e vibração do ritual do candomblé, o casal não perdia uma única sessão do terreiro, dedicando à entidade que emprestava seu nome à casa a mais irrestrita confiança, fé e devoção. Pelo menos era isso que demonstravam, participando ativamente de todas as suas atividades, não importando o dia nem a hora que elas tivessem que acontecer. O entusiasmo do casal era visível por todos os frequentadores, sendo sempre os primeiros a chegar e os últimos a sair, além de exibirem as guias e colares mais bonitos, usarem as vestimentas rituais mais impecáveis e tornarem-se em pouco tempo os melhores contribuintes para a saúde financeira do centro.
Murilo sempre fora um homem bem apessoado, elegante, dono de  personalidade alegre e descontraída, que frequentemente faziam dele o mais simpático e visto como gente boa em qualquer reunião. Padrão econômico elevado e estabilizado, graças ao faro apurado para os negócios, bens materiais abundantes, a começar pelo moderníssimo sedan importado, que estacionava pomposamente defronte ao centro, Murilo chegara ao terreiro por sugestão de um amigo, mais por curiosidade do que por necessidade.
Todavia, a nota alta do casal era dada por Anabela, uma belíssima mulher de porte altivo, bonita e perfeita sob todos os aspectos, além de possuidora de dotes físicos verdadeiramente deslumbrantes. Não havia quem não sentisse admiração - e por que não dizer? - uma ponta de inveja de tantas evidências de sucesso e realização.
Dona Juvenília, a mentora espiritual da casa deixava bem clara sua simpatia pelo casal, tanto que na primeira oportunidade que teve, definiu que já era hora de Anabela deitar a camarinha, ou seja, ser iniciada no candomblé no rito mais conhecido como "fazer a cabeça", devidamente preparada para que o Inkice/Orixá passasse a habitar no Ori/mutuê (cabeça) da nova adepta.
Poupo os leitores dos detalhes, mas afianço que todos os procedimentos de iniciação foram realizados, culminando com a série de festejos e rituais dedicados à cada entidade e linhas de desenvolvimento mediúnico, ritualistico e doutrinário. O desfecho ocorreria em plena mata fechada, uma vez que a entidade revelada a Anabela como seu guia de cabeça pertencia à corrente de Oxossi, santo guerreiro e protetor da floresta.
No dia previsto, Murilo resolveu fazer uma surpresa à mulher e sem que ela soubesse lotou um helicóptero de pétalas de flores, que seriam jogadas do alto, no local da cerimônia. Tudo correu conforme planejado por Murilo, que recomendou ao piloto que chegasse num vôo baixo, a fim de que a surpresa fosse completa. Identificado o ponto, a máquina faria uma curva suave e aberta, fazendo sua aproximação final para o arremesso das flores.
Qual não foi a surpresa de Murilo ao sobrevoar a pequena clareira e se deparar com a sua mulher, completamente nua, nos braços de Joaquinzão, um mulato forte e despachado, que cumpria o papel de cambono, atendendo os pedidos e assessorando na comunicação as entidades que baixavam no terreiro. Dedicavam-se a uma prática não muito espiritual, antes pelo contrário, desfrutando da tranquilidade de estarem só os dois num lugar ermo e de difícil acesso. Alí tratava-se apenas de um homem e uma mulher, entregues aos prazeres do sexo, que separaram-se rapidamente ao pressentir o perigo que chegava rapidamente via aérea.
Diante desse quadro, Murilo não pestanejou. Pediu ao piloto nova aproximação e antes mesmo que a nave pousasse, pulou sobre o Joaquinzão, num espetacular salto de mais ou menos cinco metros de altura, atingindo-o na cabeça e nocauteando o desafeto com um certeiro golpe, digno de um astro de MMA.
Novamente poupo você, leitor, de pormenores relativos ao encaminhamento do Joaquinzão ao hospital, onde até hoje tenta se recuperar. Também omito propositadamente os trâmites referentes ao divórcio de Murilo e Anabela, que teria ocorrido bem antes se o Murilo tivesse desconfiado um mínimo que fosse da excessiva atenção dispensada por Joaquinzão à Anabela, semanas depois do casal ter começado a frequentar a casa do Caboclo Sete Folhas...

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Mancha na reputação


Quem reside fora da cidade de São Paulo talvez não conheça nem de ouvir falar. Trata-se de uma categoria profissional popularmente identificada pelo curioso epíteto de "marronzinho" e vinculada à Companhia de Engenharia de Tráfego. Sem nenhum julgamento ou crítica ao desempenho profissional da classe, cabe aos marronzinhos a tarefa de orientar, disciplinar e fiscalizar o caótico e enlouquecedor trânsito da metrópole. Há quem acuse os marronzinhos de hidrófobos, pois basta cair uma leve chuva sobre a cidade para eles desaparecerem como por encanto, deixando motoristas e pedestres órfãos de pai e mãe e entregues ao próprio azar. Pura maldade!
Agora, se entre os marronzinhos existe um que cumpre seu dever de maneira que eu diria quase espartana, pra não dizer religiosa, esse cara é o Gilberto. Pode até existir igual, mas eu até apostaria que ninguém na CET cumpre sua obrigação com tamanho desvelo e dedicação quanto o marronzinho Gilberto. Ele gosta tanto do que faz que chega ao extremo de se oferecer para cobrir a falta ou licença de algum colega de serviço que necessite ausentar-se do trabalho.
Tamanho zelo e dedicação profissional só não são maiores na vida do Gilberto quanto a alegria que ele sente em passar o reveillon na praia, levando flores para Iemanjá e cumprindo o ritual de pular as sete ondas, fazendo um pedido em cada pulo, ao mesmo tempo que saúda a virada do ano estourando uma champanhe.
No último dia do ano passado não foi diferente. De folga no serviço, lá foi o Gilberto rumo à Praia Grande cumprir alegremente o seu ritual. Hospedado num apartamento cedido por uma colega de trabalho, nosso amigo aproveitou o dia de praia como manda o figurino: tempo ajudando, deu pra pegar uma cor sob o sol, saborear várias brejas, matar uma caipirinha e na hora que bateu a fome, derrotar uma alentada porção de camarões fritos na hora ali no quiosque. Pra incrementar, Gilberto combinou o petisco com molho rosé e arrematou com água de côco bem gelada.
Assim, depois de um dia perfeito, caiu a tarde, em seguida a noite e Gilberto, após um banho reconfortante, além de devida e impecavelmente trajado de branco, juntou-se à massa humana que caminhava em direção à praia, a fim de saudar o novo ano prestes a começar. Música, fogos, brindes, muita alegria, contagem regressiva e... Feliz Ano Novo!
Gilberto, depois de abraçar e cumprimentar alegremente todas as pessoas ao seu redor, como de hábito dirigiu-se ao mar, para a entrega de flores e o ritual das sete ondas. Iemanjá aceitou a oferenda de bom grado e Gilberto esperou a chegada das marolas. Uma... Duas... Três... Na quarta, uma sensação estranha... Na quinta, uma dor abdominal muito forte, quase insuportável, semelhante a um espasmo... Na sexta, não deu pra aguentar e antes de pular a sétima onda, os camarões ao molho rosé, consumidos na praia, numa tarde de sol quente viraram os intestinos do Gilberto do avesso e não houve jeito de segurar o poderoso jato entérico, ali mesmo, sob as vistas da multidão. Não é muito difícil imaginar o que isso significou para a reputação de alguém até então vestido inteiramente de branco.
Ignora-se como essa história acabou chegando aos ouvidos e bocas da galera aqui da Vila, que costuma ficar reunida no boteco, bebericando umas brejas e falando da vida dos outros. O fato é que de vez em quando, alguém chega e pergunta: "Não vi mais o Gilberto. Alguém tem visto ele por aí ultimamente?" "Gilberto? Mas que Gilberto?" "O marronzinho, pô!" Geralmente seguem-se muitas risadas, qualquer que seja a conotação que venha a ser dada à resposta...

terça-feira, 21 de maio de 2013

Testemunha ocular


- Muito bom dia, ouvintes da rádio Veloz, a mais bem informada da cidade. Falando o repórter Plínio Junior em edição extraordinária do Plantão de Notícias, diretamente do cruzamento das ruas Abacateiros com Miosótis, na Vila São Tomé, onde uma aglomeração de aproximadamente 30 populares chamou a atenção da nossa reportagem e a sua rádio Veloz, como sempre em dia com a notícia, chega ao local a fim de apurar os fatos. Meu amigo, o senhor aí, de boné e blusa de lã marrom, o que está acontecendo por aqui?
- Olha moço, eu ainda não vi direito, sabe como é, eu tenho 83 anos, sofro de catarata, reumatismo, diabete... Agora mesmo eu estava voltando do posto de saúde, fui buscar meus remédios, mas não consegui achar todos, tá faltando o de...
- Muito obrigado pelas suas informações, mas vamos tentar ouvir aqui este jovem. Ele parece estar bem cansado e ofegante, dá a impressão que andou correndo de alguma coisa... O que foi que houve, jovem?
- Então, eu tava jogando bola com meus amigos ali na quadra e alguém deu um chutão pra cima e eu vim aqui correndo pra pegar a bola e agora a gente vai seguir no jogo...
- Perfeito, obrigado... Mas vamos falar com esta garota, que já estava no local falando ao celular quando aqui chegou a nossa reportagem. O que você viu por aqui, que está atraindo tanta gente neste local?
- Bom, eu vi tipo que o ônibus que eu ia pegar, tipo assim, passou com tudo, eu dei sinal mas ele tipo não parou e eu tava tipo assim falando com minha amiga que acho que vou tipo chegar atrasada na aula e...
- Certo, obrigado. Mas esta dona de casa que vem vindo ali deve ter alguma informação para nos dar. Senhora, eu percebi seu andar apressado, foi por causa de alguma coisa que aconteceu por aqui e que atraiu tanta gente nesta esquina?
- Olha, eu não sei dizer o que aconteceu, o senhor vai me desculpar, eu estou com o almoço atrasado e ainda tenho que levar as crianças para a escola...
- OK, a senhora não viu o que aconteceu, de qualquer forma agradecemos. Vamos colher a palavra desta respeitável idosa, que está olhando fixamente para o meio do cruzamento. Por favor, estou vendo que a senhora está olhando tão atenta para o meio da rua, pode dizer aos ouvintes da rádio Veloz o que aconteceu aqui, para atrair toda essa gente a esta hora do dia?
- Seu repórter, por enquanto não vi nada acontecendo, não senhor. Mas com todo esse povaréu ajuntado por aqui, essa agitação danada e a confusão do trânsito, é bem capaz de acontecer qualquer coisa mesmo. Eu mesma já vi cada uma nessa esquina, que contando ninguém acredita. Pro senhor ver, em 1963 meu falecido marido...
- Muito obrigado à simpática velhinha pela colaboração, cujo depoimento encerra esta reportagem. Este foi um boletim informativo em edição extraordinária da sua rádio Veloz, sempre atenta aos fatos que acabam virando notícia. Voltamos agora aos nossos estúdios...

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Bacalhoada à Portuguesa


Estava tudo certo pra ser um domingo super legal. E delicioso. Como o prato favorito do Arruda era bacalhoada, já na véspera tudo fora cuidadosamente planejado para que o almoço dominical fosse mais um daqueles imortalizados pelo prato que era a especialidade da Fatiminha, mulher do Arruda. Filha de portugueses, Fatiminha dominava como poucas a arte de preparar a autêntica bacalhoada à moda da terrinha.
Bem cedinho todos os ingredientes já se encontravam à sua disposição: batatas, cebolas, pimentões verdes, amarelos e vermelhos, tomates, azeitonas pretas, cheiro verde, azeite de oliva (português, é claro!) e o astro principal da festa, o bacalhau do Porto, em grossas postas devidamente demolhadas e dessalgadas de véspera.
O preparo da receita nunca fora segredo para a Fatiminha. Colocou o bacalhau para ferver em uma panela com água, a mesma que costumava reservar para preparar o arroz branco da guarnição. Após essa etapa, usou uma panela de barro para montar as camadas, primeiro com as batatas, em seguida o bacalhau, depois os pimentões, tomates, cebolas e as azeitonas. Salpicou o cheiro verde, regou com o azeite e levou ao fogo para apurar o sabor do bacalhau, faltando apenas o cozimento das batatas até elas amolecerem. O delicioso aroma já se espalhava pela casa, prenunciando uma refeição das mais saborosas.
Foi aí que se deu o improvável acontecimento daquela manhã domingueira. Um imperceptível vazamento de gás provoca uma formidável explosão, que reduz toda a cozinha a escombros. Abaixada a poeira, Fatiminha e Arruda se abraçam, ainda atônitos e assustadíssimos, porém dando graças por não terem sofrido sequer um arranhão. Foi uma questão de segundos, o casal tinha ido até a adega, a fim de escolherem juntos o vinho que iria acompanhar o prato principal do almoço.
Foi mesmo muita sorte terem escapado ilesos. E sorte também do simpático vira-latas da vizinha, que até no dia seguinte ainda lambia os beiços, deliciando-se com os bons pedaços do legítimo bacalhau do Porto que haviam chovido sobre sua casinha no quintal...

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Salve, George!


Conheci o Jorge quando ele tinha uns dez ou onze anos, mais ou menos a mesma idade que eu na época. Nossa amizade começou meio por acaso: a pelada na rua estava pra começar e a turma já tinha até escolhido os dois times quando viram que um lado estava com um jogador a mais do que o outro. Para o garoto magro e franzino que espiava de longe, encostado no muro, olhar tímido, bastou um gesto pra ele se aproximar, ansioso para entrar no jogo e se enturmar. Pude notar sua alegria e um esboço de sorriso quando eu falei: "O magrinho fica no nosso time!"
Quando acabou a pelada, cheguei perto do magrinho e perguntei o seu nome "Jorge", respondeu. "Mudei ontem pra cá. Posso vir jogar outras vezes com vocês?" "Claro, Jorge, a galera gostou do jeito que você toca fácil, vai ter sempre lugar pra você bater uma bolinha com a gente." "Legal, então." disse Jorge. "Também tô aprendendo a tocar guitarra, ganhei uma da minha avó! Se quiser, pode ir lá em casa escutar. Só que ainda não sou muito bom, mas garanto que vou ficar!", disse rindo.
E foi assim que eu e o Jorge nos tornamos grandes amigos. Eu diria que éramos quase inseparáveis e de tanto a gente andar junto e ser um pouco parecidos, tinha até quem pensasse que ele era meu irmão. Nossa amizade com o tempo se fortaleceu e conforme prometera, o Jorge levou a sério os estudos de música e acabou ficando o maior fera na guitarra. Dava gosto ouvir os riffs que ele tirava com extrema facilidade.
Um dia ele chegou lá em casa e me falou, meio chateado "Cara, tô mudando! Vou morar em outro país, acho que vai ser difícil a gente se trombar de novo, mas quero te dizer que você foi meu melhor amigo, você vai estar sempre aqui, ó..." e bateu no lado esquerdo do peito. Demos um abraço de irmãos, e nos despedimos, prometendo sempre mandar notícias um para o outro.
Jorge cumpriu sua promessa. Volta e meia postava fotos e mensagens pela internet, chegou a me ligar algumas vezes, dizendo que agora viajava muito porque tinha se tornado músico profissional. Fazia parte de uma banda que estava dando super certo, junto com uns carinhas muito legais e talentosos. Fiquei muito contente com o sucesso do Jorge e sua banda, acompanhando na medida do possível a sua carreira.
Nossos contatos foram ficando cada vez mais esparsos, até que um dia, ao pegar minha correspondência com o carteiro, recebi um pequeno estojo contendo um CD e uma carta, cujo remetente era o meu amigo Jorge. Comecei a ler ali mesmo, no portão e entre várias notícias sobre a carreira, ele contava sobre como sua vida tinha se transformado desde a época que a gente era garoto e jogava bola na rua. Pedia pra eu ouvir e dizer o que achava das quatro músicas que ele tinha gravado especialmente para mim no CD que tinha vindo junto com a carta. Dizia também que o João, o Paulo e o Ricardinho, seus parceiros na banda, sabendo da minha amizade com ele, também me mandavam abraços.
Entrei em casa, liguei o som e me deliciei com as músicas que o Jorge me mandara. Ouvi todas por diversas vezes, impressionado com aquele estilo até certo ponto místico de rock. Gostei muito, demais mesmo de "He comes the sun" e "My sweet Lord", embora minhas favoritas até hoje continuem sendo "While my guitar gently seeps" e "Something"...

terça-feira, 14 de maio de 2013

Cabeça de área


Não é por nada não, mas no futebol quem devia merecer e ser visto com um pouco mais de consideração é o zagueiro central. Antigamente a gente via a escalação de um time e sabia logo quem era o zagueiro central, figura predominante na defesa, que tinha no quarto zagueiro apenas um fiel ordenança, um ajudante sempre a postos para fazer a cobertura, caso algum atacante se metesse a besta de tentar entrar na área com a bola dominada. Aliás, essa é uma das prováveis hipóteses para o surgimento da endeusada tabelinha. Além do tranco salvador, via de regra era tarefa do zagueiro central a honrosa tarefa de levantar cada taça conquistada, pois nada mais imponente nessa hora do que o próprio zagueiro central também acumular as funções de capitão do time.
Com a evolução (?) tática do futebol, aumentou a correria em campo e com ela o temor do zagueiro central de ser superado na arrancada pelo atacante velocista, que pegando a bola no meio de campo, costuma disparar feito um raio contra a meta adversária, só parando depois de estufar as redes. Ou então depois de levar na boca uma cotovelada nem sempre bem disfarçada, cartão de visita só pra saber quem é que manda de verdade naquela região do campo.
Apesar de não desfrutar do mesmo prestígio dos meio-campistas e dos atacantes artilheiros, na maioria das vezes o bicho por vitória ou empate é garantido pelo zagueiro central. Um puxãozinho de camisa aqui, um totó na canela durante um escanteio ali, uma cusparada intimidadora na reposição de bola e assim vai o zagueiro levando sua vida sofrida, nem sempre recompensada à altura.
Porém, de todas as vicissitudes enfrentadas pelo zagueiro, a pior de todas ocorre quando uma falta é cometida defronte à grande área e cabe a ele a perigosa tarefa de ser o homem do meio na barreira. Tive vários amigos que desistiram da prática futebolística depois de levarem uma bolada na região onde só quem é homem sabe o quanto dói uma saudade. Bolada no saco provoca uma dor tão intensa que é capaz de levar o atleta a repensar a sua própria condição humana, de uma forma quase filosófica.
Como se vê, vida de zagueiro não é nada fácil. Assim, quando seu time entrar em campo, reserve um aplauso a mais para essa figura indevidamente menos valorizada. E dependendo do resultado do jogo, sinta-se à vontade para entre uma mordida no sanduíche de pernil e um gole na cerveja, comentar na saída do estádio: "Também, com uma zaga dessas, a gente tinha mesmo é que tomar no rabo..."

sábado, 11 de maio de 2013

A sobremesa


Essa é uma história do tempo em que a mulher não se sentia diminuída ou depreciada pelo fato de preparar uma refeição para o marido, numa demonstração de carinho e afeto. Por isso, não tem relação nenhuma com pessoas ou fatos reais da atualidade, onde servir um cafezinho é interpretado como atitude machista e dominadora, que segundo reza a cartilha feminista, nenhuma mulher moderna deve se submeter, sob pena de estar regredindo um século e meio na trajetória da emancipação feminina.
Começa com um pedido, dito na mais terna e suave entonação, uma simples sugestão, pronunciada sem a menor conotação de crítica ou animosidade por um marido à sua esposa: "Pô, Gracinha, bem que qualquer dia desses você podia fazer uma sobremesa legal pra gente, né?" Não era a primeira vez que Juvenal, o marido, dava esse toque pra mulher, que ouvia o pedido com seu costumeiro ar de enfado e distração. O que acontecia, na verdade, é que a Gracinha nunca teve a menor afinidade com os chamados dotes culinários, limitando seu repertório gastronômico ao simples do básico do trivial e olhe lá. Não passava um dia sem que cometesse algum deslize, fosse salgando demais o arroz, deixando o feijão queimar no fundo da panela ou errando feio no ponto do empadão ou de um singelo picadinho. O fato é que Gracinha e o fogão revelavam total incompatibilidade entre si e com isso quem pagava o pato era o pobre Juvenal, que acostumado desde criança aos quitutes da mãe, tinha que encarar cada gororoba que vou te contar... Embora tímida e delicadamente, vivia sugerindo à mulher que procurasse alguma forma de superar aquela aversão nutrida de maneira ostensiva para com a cozinha.
Por isso, no dia seguinte, logo ao chegar no trabalho, a primeira coisa que Gracinha fez foi procurar pela Edilene, confidente, amiga de fé e irmã camarada e ir logo expondo o problema: "Edi, já tô de saco cheio do Juvenal me pedir pra fazer uma sobremesa pra ele. Você me conhece e sabe que eu não tenho o menor talento pra essas coisas. Amiga, sei que você domina a arte, preciso de um help, qualquer receita serve!" Edilene pensou um pouco e já saiu com a solução pronta, na ponta da língua: "Vamos fazer melhor, Gra. O Juvenal não chega em casa às oito? Pois bem, a gente sai às seis, vamos pra sua casa, eu preparo uma receita que eu sei todo homem adora e você só tem que dizer que foi você quem fez..."
Se assim foi combinado, melhor ainda foi feito. Só que justamente naquele dia o Juvenal adiantou os relatórios, saiu mais cedo do escritório e chegou em casa bem antes do horário de costume. Chegou justo na hora que a Edilene dava os últimos retoques na decoração de um monumental brigadeirão, que de cara deixou o Juvenal com água na boca. Pra resumir, além da sobremesa a Edilene acabou preparando todo o jantar e fazendo companhia ao casal na refeição, servida como manda o figurino, com entrada, prato principal e naturalmente a sobremesa. Tudo acompanhado pelos elogios, comentários e sorrisos do Juvenal, muita conversa e a agora indisfarçável expressão de ciúme da Gracinha, percebendo algo estranho no ar.
Pouco mais, pouco menos de seis meses após esse insuspeito encontro, Gracinha chega em casa do trabalho, ar cansado e abatido, deixa-se cair no sofá, enquanto se desmancha em lágrimas e lança aos ares um rosário de imprecações. "Canalha! Bandida! Traidora! Cachorra! Usar um jantar pra seduzir o meu marido... Piranha! Ordinária! E a cadela ainda se dizia minha amiga..."
Longe dali, num confortável apartamento da zona sul, Edilene recebia Juvenal com abraços, muitos beijinhos e uma surpresa: "Amor, fiz a sua sobremesa favorita. Hoje teremos... tcharan,... brigadeirãooo!" Nem que tentasse por horas seguidas eu conseguiria aqui traduzir em palavras o brilho de felicidade no olhar do Juvenal...

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Haja estômago

Quando alguém diz "Eu não tenho estômago pra isso...", geralmente está se referindo a alguma coisa ou situação muito feia, desagradável ou repugnante. O primeiro sinal de que algo errado está acontecendo é aquela sensação de enjôo e de que tudo está revirando por dentro, querendo sair a qualquer custo o mais urgente possível, sob o risco de haver uma explosão. Às vezes a sensação é puramente psicológica e a expressão ganha o sentido figurado, mas você sente o desconforto de uma forma tão real e evidente que nada nem ninguém será capaz de demover você da ideia de que é o seu estômago quem está passando a comandar as ações.
Pois eu vou dizer uma coisa pra vocês: eu não tenho mais estômago para esse clima de terror e violência instalado por toda a região metropolitana de São Paulo, com a bandidagem tomando conta da vida das pessoas de uma forma antes nunca vista. Antigamente o risco era de quem precisava chegar tarde da noite em casa, vindo da escola ou do trabalho. Ruas escuras e desertas eram um convite para o ataque dos criminosos, preferencialmente contra pessoas que ostentassem algum bem de valor. Atualmente não existe hora que não ofereça perigo e iminente risco de vida.
Leis obsoletas, autoridades omissas e tolerantes, polícia mal remunerada e desmotivada, sistema carcerário em estado de penúria moral e material, completamente falido e sucateado, comandado por facções criminosas que mandam e desmandam, além da consciência da impunidade por parte de menores infratores, tudo conspira contra o cidadão comum e de bem, que cada vez mais sente-se inseguro e desprotegido, sem ter a quem recorrer.
Aí chega o insosso, insípido e inodoro governador do Estado, sinalizando com ridículos números de pesquisa alardeando que as taxas de criminalidade estão em declínio, que o número de latrocínios caiu em não sei quantos por cento, que os assassinatos por arma de fogo diminuíram tantos por cento, transformando vítimas e famílias em números e meros dados estatísticos, esquecendo de que para quem já está morto a pesquisa não tem mais a menor importância.
É por isso que quando digo que não tenho mais estômago, quero dizer que também não tenho mais cérebro, pulmões, fígado, pâncreas, intestinos, vesícula e tudo o mais que se enquadre no plano da musculatura lisa, uma vez que são os primeiros tecidos do corpo humano a se romper ou dilacerar, diante do impacto ou perfuração causados por qualquer tiro ou facada, venham eles de onde vierem...




sexta-feira, 3 de maio de 2013

Vamos a la playa...


Pode ser até que exista, mas eu não conheço ninguém que goste mais de praia do que a Lucinda. Vocês acreditam que ela é tão fanática por praia que a decoração do salão de beleza que ela montou é todinho decorado com temas litorâneos?
É um tanto de pôsters e painéis com imagens de estrelas do mar, de conchinhas, de ondas, de guarda-sóis e banhistas que chega até a confundir a vista, dando a impressão que o salão foi montado bem ao estilo pé na areia. Mesmo depois de sofrer três decepções amorosas seguidas, a Lucinda consegue programar sua depressão para durar até o começo do verão, quando a praia passa a ser sua grande razão de viver.
Quando diz que precisa comprar biquinis novos, a Lucinda nem pensa nas três gavetas repletas dessas graciosas peças de banho que ela guarda carinhosamente como lembrança de momentos felizes, alguns segundo ela inesquecíveis, vividos em verões passados.
Por essas e outras a Lucinda vibrou de alegria quando ouviu a moça do tempo dizer na TV que o tempo no fim de semana estaria perfeito para curtir uma praia. Mais contente ainda ela ficou quando suas melhores amigas, Lurdinha e Kelly, toparam passar um dia inteirinho na praia. Mas tem que chegar bem cedo e sair só quando escurecer, pra aproveitar bastante, determinou a Lucinda.
No sábado o salão da Lucinda funcionou até muito tarde atendendo todas as clientes habituais, que era para deixar o domingo inteirinho livre, só pra curtir a praia junto com as amigas. Pra não perder tempo pela manhã, Lucinda convenceu Lurdinha e Kelly a dormirem na sua casa.
O domingo ainda nem havia clareado direito e lá estavam as três, no ponto de ônibus, antecipando ansiosas como o dia seria maravilhoso. Já no ônibus repassavam o conteúdo das sacolas de praia, checklistando item por item: toalhas, esteira dobrável, óleos, cremes e soluções protetoras, óculos de sol, celular, documentos, dinheiro... bem, tudo aquilo que as mulheres acham indispensável levar numa sacola de praia.
Chegaram, escolheram um lugar estratégico perto de um quiosque - a bebida não pode ficar longe - e do essencial chuveiro de água doce. Devidamente instaladas, as amigas só pensavam em curtir o sol, o mar e quem sabe algum bonitão dando sopa.
Manhã perfeita, mar perfeito, praia perfeita. Depois de um rápido mergulho, as três amigas, já relaxadas pela terceira caipirinha, dormitavam sob o sol do fim da manhã quando se ouviu, à distância, um alarido muito parecido com o de uma torcida comemorando um gol. O alarido foi aumentando, aumentando e quando Lucinda ergue o corpo para ver do que se tratava, sente uma espécie de choque, enxerga um clarão que vai escurecendo, até ela não ver mais nada.
Aos poucos ela começa a perceber, primeiro umas imagens desfocadas, depois outras mais nítidas e finalmente descobre que está deitada num leito de hospital, sendo atendida por uma enfermeira de meia idade que lhe aplica uma injeção intravenosa.
O que me aconteceu, pergunta Lucinda. A enfermeira, com cara cansada e de poucos amigos, responde que Lucinda foi vítima de um arrastão na praia e trazida ao hospital pelo Resgate, com suspeita de traumatismo craniano.
Mas a que hora foi isso, onde estão minhas amigas Lurdinha e Kelly, elas estão bem? pergunta Lucinda. Devem estar, pois já vieram visitar você pelo menos umas quatro vezes cada uma. Me visitar? Quatro vezes? Como assim, a gente estava juntas na praia hoje de manhã? pergunta Lucinda aflita e sem entender direito o que estava se passando com ela.
Moça, fique calma, você está aqui internada há dois meses, em estado de coma profundo. Teve muita sorte em ser atendida pela melhor equipe de neurocirurgiões deste hospital e provavelmente ainda ficará algumas semanas por aqui, em tratamento e observação. Com licença, se precisar de alguma coisa é só chamar.
Lucinda, ainda confusa e sob o impacto da revelação, olha ora para o teto do quarto, ora para as nuvens brancas que passam pela janela. E antes mesmo de se dar conta de qual seria seu real estado de saúde, só consegue pensar: dois meses e eu aqui, sabe-se lá até quando. É, não tem jeito, parece que este verão está mesmo perdido...

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Reflexão sobre o não prestar


Para determinadas mulheres, homem nenhum presta até o momento em que elas se veem na condição de   precisar abrir um vidro de conserva, consertar a resistência do chuveiro, trocar o pneu furado ou matar uma barata mais atrevida, que inadvertidamente e em hora imprópria tenha resolvido dar um rolê pela casa. Confesso que percebo uma forte conotação machista nesta velha e surrada analogia, mesmo porque a mulher dos dias atuais já superou esses obstáculos naturais à condição feminina e hoje são capazes até mesmo de facilmente trocar um botijão de gás, caso isso se faça absolutamente necessário.
Geralmente o homem "imprestável" é aquele que também esquece datas importantes para elas, como o aniversário de sete meses de namoro, o dia da semana em que deram o primeiro beijo ou de que cor era a blusa que ela usava no dia em que foram pela terceira vez ao cinema.
Também é agraciado com o nefando adjetivo o sujeito que insiste em ver futebol tomando uma cervejinha nas noites de quarta e tardes de domingo, de continuar amigo da galera da facul e insistir em gostar de heavy metal, de passear com o cachorro e de comer lasanha - a melhor do mundo! - na casa da mãe.
Igualmente não presta todo homem que ainda curte uma partida de Fifa, Call of Duty ou Battlefield, de matar de vez em quando a saudade do skate ou da velha prancha de surf, ambos ultimamente meio esquecidos num canto qualquer da garagem. O homem que não presta de verdade não tem fixação doentia com a aparência, com as roupas da moda e com a boa forma física. Também não presta aquele que costuma usar as manhãs de sábado para dar um trato no carro ou então jogar uma pelada de futebol society com os amigos.
Aceitar rachar uma conta, ter uma amiga bonita e gostosa no trabalho e não reparar no novo corte de cabelo ou na cor do esmalte são atributos fatais que levam o cidadão imediata e diretamente a ser excomungado e mandado para as mais obscuras profundezas do não-prestismo.
É claro que aqui neste breve e reduzido espaço eu não teria a menor condição de esgotar todas as nuances do assunto. Mas de uma coisa estou certo: geralmente o homem que não presta é um cara feliz. Mesmo que não se dê conta disso...