terça-feira, 30 de abril de 2013

Mesa redonda

- Pois vou te dizer uma coisa: pra mim foi o Tiziu e não tem conversa...
- Ah, meu, que nada. Na minha opinião ninguém conseguiu superar o Jeremias.
- Cara, tu tá ficando louco? Um meia que só sabia tocar de lado, nunca vi ele armando nenhuma jogada de perigo no ataque! Vivia ali na intermediária, só esperando a bola chegar nele, um folgado isso sim...
- Quer me dizer que o Tiziu fez grande coisa a mais?
- O quê? Tu já esqueceu de quem foi o cruzamento pro gol de cabeça do Alemão, na decisão do festival do Barreiro que o Vila ganhou? Do Tiziu, claro, ponta bom, dos antigos, que pegava na bola e partia pra cima dos beques, sem medo de levar sarrafada...
- Um ciscador, nada mais do que isso! Jogava mais pra torcida do que para o time.
- Tem que ver que quando o Tiziu jogava a torcida lotava o barranco do lado da fábrica. Parecia até jogo de time federado...
- Mas tem que ver que nessa época o Vila tinha mesmo um timaço: Japonês; Véio, Alemão e Neguinho; Chulé, Branco e Valdomiro; Tremoço, Jura, Boqueira e Tiziu. Saudade dessa época, viu...
- Não vai dizer que já esqueceu aquela escalação que tinha o Maurão do Frango; Joaquim, Borso e Lelinho; Arroto, Cunha e Jeremias; Landinho, Maurão da Lena, Paricido e Cuiabá. Tá lembrado agora?  
- É, mas tem que ver que foi na época do Turcão na presidência, né? Do total arrecadado em cada ponto de aposta o Turcão repassava cinco por cento pro Vila. Aí, com dinheiro em caixa era fácil ele arrumar jogador bom, conservar o campo, comprar uniforme novo, alugar caminhão pra levar a torcida quando o jogo do Vila era fora...
- Até quando o Turcão vai ficar em cana?
- Sei não, dizem que ele arrumou umas treta lá na cadeia, o negócio sujou pro lado dele...
- Aí é foda, né meu? Mas continuo achando que o Tiziu foi o melhor que já vestiu a camisa do Vila. Raça, garra, brigador, encarnou o espírito do legítimo vilaroseano. É assim mesmo que se fala?
- Acho que é, mas insisto que o Jeremias foi muito mais craque... Ô Juca, desce mais duas?
- E mais daquele tira gosto, beleza Juca?...

O churras do Ariovaldo

O Ariovaldo não se contentava em simplesmente organizar uma churrascada. Para ele, churrasco tinha que ser assim uma espécie de ritual, planejado com antecedência, nos mínimos detalhes, para que nenhum pormenor fosse esquecido, tudo corresse nos conformes e que os convidados dele se lembrassem por muito tempo. Por isso, logo depois de completar nove anos de casamento com a Elisinha, o Ariovaldo não falava outra coisa que não fosse na churrascada que iria organizar pra comemorar, dali a um ano, sua década de felicidade ao lado da sua querida esposa.
Conhecendo bem o marido, Elisinha não se surpreendeu quando o Ariovaldo lhe contou dos planos de construir um coberto ali, bem ao ao lado da lavanderia, criando um espaço para mesas, cadeiras e conforto dos felizardos que pela graça dos céus fossem participar do memorável acontecimento.
Se assim foi pensado, assim foi feito: cinco meses depois de muita bagunça e sujeira no quintal, além de inúmeras discussões com o pedreiro mestre da obra, finalmente ficou pronto o ambiente sonhado pelo Ariovaldo para festejar o décimo aniversário de seu casamento com a Elisinha.
Com várias semanas de antecedência a relação dos convidados já estava pronta, bem como a das compras essenciais para garantir o perfeito abastecimento durante todo o transcurso da festividade. Carnes e saladas de todos os tipos e para todos os gostos, saladas, muito chopp, cerveja, águas e refrigerantes, enfim comida e bebida à vontade, pra ninguém botar defeito, nem sair reclamando pelo menor motivo que fosse.
E foi assim, num misto de elegria e ansiedade, finalmente chegou a tão esperada semana do churras do Ariovaldo. Tudo combinado de véspera com o Betão, proprietário da Casa de Carnes Roberto, há mais de cinco anos tradicional fornecedor da matéria prima essencial de todos os churras promovidos pelo Ariovaldo. Divido o sucesso dos meus churras aos cortes precisos, que só o Betão é capaz de fazer, jactanciava-se o sorridente Ariovaldo, querendo parecer humilde.
Chega o grande dia e depois de uma noite passada praticamente em claro, repassando pela milionésima vez cada minúcia, logo cedinho Ariovaldo se dirige ao estabelecimento comercial do Betão, a fim de ele próprio fazer a retirada e o transporte da preciosa mercadoria. Sai em silêncio, para não acordar a Elisinha, afinal hoje será um dia muito cansativo para ela.
Qual não é o espanto do Ariovaldo ao dar de cara com as portas do açougue ainda cerradas, num claro sinal de que algo não batia com os planos tão exaustivamente traçados. Olhou o relógio, conferiu o horário, viu que estava dentro do combinado. Primeiro Ariovaldo chamou. Depois bateu, bateu e bateu com força na porta de aço e nada. Quase meia hora se passa e nem um rumor, por menor que fosse saia do interior do estabelecimento.
Diante do esforço infrutífero, acometido do mais absoluto desespero, Ariovaldo retorna à sua casa, para juntamente com Elisinha traçar um eventual plano B. Entrou correndo, chamando pela mulher. Foi até o quarto, depois no banheiro, olhou na lavanderai, no quintal e, por último, no coberto recém construído. Nada da Elisinha, em lugar algum da casa.
Já à beira de um colapso, Ariovaldo repara num papel escrito à mão, colado com durex no batente da porta da cozinha. Ariovaldo se aproxima e lê, escrito com a melhor caligrafia da Elisinha:
Ari, eu e o Betão resolvemos ser felizes juntos. Embora seja do ramo, ele não me vê como um simples pedaço de carne. Adeus. Eli...

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Na fila de espera


Essa gripe H1N1 tem dado mesmo o que falar. A começar pelo seu "nome de guerra" - gripe suína - que desde a primeira epidemia tem deixado todo mundo, e os palmeirenses em particular, com a cabeça mais quente do que a febre provocada pela moléstia.
Como sempre, é nesta época do ano que a gripe vira uma ameaça mais real do que a provocada pela bandidagem que campeia solta por todo o Estado de São Paulo. "Está sob controle!", brada o governador, exibindo como sempre o seu costumeiro maço de folhas de pesquisa, diante de mais um problema que afeta a população completamente desprotegida e sem ter a quem recorrer. Também na esteira de mais um surto, rola na mídia a famigerada campanha de vacinação promovida pelo governo federal, cuja eficácia está bem longe de ser aferida e comprovada.
A exemplo do que ocorre na maior parte dos países africanos, desprovidos de praticamente todo e qualquer meio civilizado de sobrevivência, aqui essas doenças típicas do subdesenvolvimento, como gripe, dengue, cólera e febres em geral só não matam mais do que bala de "revórver", como na letra do imortal samba "Tiro ao Árvaro", de Adoniram Barbosa.
É, meus amigos, a coisa por aqui tá feia. E como quem tem, tem medo, lá fui eu dia desses, rumo ao posto de saúde aqui do bairro, levar minha senilidade para ser protegida da famigerada gripe da estação. No posto tive a alegria de reencontrar algumas pessoas que ao longo deste e de boa parte do século passado foram meus vizinhos, amigos e conhecidos. Os cabelos brancos e as rugas exibidas pela maioria eram como documentos originais, atestando que embora a gente seja de uma época com bem menos recursos do que agora, até que fomos bem fortes e resistentes para continuarmos sobrevivendo até agora.
Não sei se na campanha do ano que vem teremos a alegria de nos reencontrarmos todos, ali no posto de saúde. Digo isso porque entre um sorriso aqui, um abraço ali, pude perceber bem na minha frente na fila de espera uma senhora bem avançada em anos, que sofria bastante com o acesso de tosse que a acometia. Não falei nada, mas pelo estado da senhorinha e o roncar acompanhado de chiados de sua tosse incontrolável, fiquei com a impressão que essa dose de vacina que ela iria tomar dentro de instantes, pode ter chegado até ela tarde demais...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Feitos um para o outro

Eu se que você deve estar de saco cheio, de tanto que já ouviu aquela arenga do "feitos um para o outro, como Tristão e Isolda, Mickey e Minnie, Bonnie e Clyde, Romeu e Julieta e até mesmo Adão e Eva, pra não alongar demais o exemplo. Mas não tenho como evitar a mesmice e deixar de dizer que Beto e Malú nasceram mesmo, um para o outro.
Desde a chamada tenra idade, Beto e Malú nunca estiveram separados mais que um quarteirão e por mais de quinze dias, aí contando as férias escolares que cada um passava na casa das respectivos avós. Andavam e estavam em todos os lugares sempre tão juntos que era praticamente impossível olhar para um sem ver o outro. Iam à escola, a passeios, festinhas, cinema, praticavam esportes, faziam os deveres de casa e tudo mais que um casal de crianças, depois adolescentes e, mais recentemente, jovens pudessem fazer juntos.
Nunca ninguém viu nem ouviu dizer que Beto e Malú um dia tivessem tido qualquer tipo de desentendimento ou que um ficara de cara virada para o outro. Parecia até que se tratava de um corpo só ocupando o mesmo lugar no espaço, na figura de duas pessoas.
Juntos prestaram o vestibular e juntos vibraram ao se verem aprovados para o mesmo curso, o de Odontologia. Houve até quem dissesse que a escolha da profissão fora uma decisão conjunta de ambos, que queriam para sempre cuidar dos dentes um do outro, preservando assim, mutuamente, ambos os sorrisos...
Vou pular os entrementes e ir direto ao ponto: tanta convivência, parceria, afinidades e identificação só podia mesmo resultar no óbvio. Praticamente o bairro inteiro esteve presente no casamento de Beto e Malú, uma vez que todos os presentes eram, simultaneamente, amigos, colegas e conhecidos dos dois. Festão animado, lua de mel e o feliz início da vida conjugal para o inseparável casal.
E assim caminhou a vida. Passados menos de três meses, o choque da notícia que abalaria toda aquela coletividade próxima de Beto e Malú. Sim, era verdade, o casal estava se separando e tudo levava a crer que era mesmo pra valer. "Mas como, o Beto e a Malú? Separados? Não acredito!..."
Pois é, até hoje ainda tem gente que não acredita. E permaneceria incrédula, se soubesse o verdadeiro motivo do rompimento do casal. Dizem que as paredes tem ouvidos e se tem ouvidos, teriam ouvido o seguinte diálogo entre Beto e Malú, fator desencadeante do único e definitivo atrito entre ambos:
- Malú, me distraí e acabei esquecendo de comprar...
- Hum, uma pena mas não vou te dar...
- Por que isso, Malú? Me dá, vai...
- Não adianta, Beto, nem você me pedindo de joelhos.
- Mas Malú, o que te custa, eu só estou te pedindo um...
- Chega, Beto! Não vou dar e pronto! Larga de ser chato!
- Malú, você já tá me enchendo! Dá logo aí e para de frescura. Se não me der eu vou aí e te tomo nem que seja à força...
- Não dou não, Beto! Só tenho um e deixei pra fumar antes de ir pra cama...

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O nariz do servidor

O Zé da Laura era o protótipo do sujeito metódico. Funcionário público de carreira, sempre na mesma função no mesmo posto fiscal, o Zé afligia-se cada vez que olhava no calendário e calculava o quanto ainda estaria faltando para a sua aposentadoria.
Afligia-se porque não concebia a ideia de fazer outra coisa na vida que não fosse exercer suas funções de rotina, que consistiam em separar e bater carimbos em papéis na repartição e arquivar pilhas de processos no arquivo morto. Para o Zé, não existia nada mais nobre do que dedicar-se à uma atividade, que no seu entender "era de um valor inestimável para a coletividade". Para dar mais ênfase, esticava de propósito o "inestimáááável", tentando assim atribuir-lhe um valor que o engrandecesse perante o interlocutor. Era assim que o Zé via o seu próprio trabalho como funcionário público.
Por isso o Zé amava o que fazia, mais do que tudo. Minto: mais do que tudo, não. Tinha a Laura, sua mulher, com quem o Zé há mais de quinze anos dividia sua rotina conjugal,chamando-a pelo carinhoso apelido de Lalitinha, apesar do avantajado porte e estatura da mulher, que ao caminhar ao lado do Zé transformava-o num nanico, quase anão. Cada braço de Lalitinha possuia o diâmetro semelhante ao de um queijo parmesão inteiro, ou dependendo do ângulo de observação, uma peça de mortadela bolonhesa.
O rosto de Lalitinha, então, parecia saído de uma tela de Picasso, no melhor de sua fase cubista, ou seja, nada guardava proporção com nada, tamanha a forma implacável com que o tempo esculpira tal figura.
Embora o Zé, com seu perfil de mulato inzoneiro não fosse nada provido da chamada beleza máscula natural, Laura tinha o Zé na conta de um George Clooney caboclo, tamanho o ciúme que a avantajada esposa sentia pelo frágil marido. E na mesma proporção que alimentava seu ciúme, raro era o dia que o Zé não precisava ficar jurando por tudo quanto é santo que não tinha entrado nenhuma funcionária nova na repartição, nem ele tivera que atender alguma contribuinte - era assim que o Zé identificava toda pessoa que se dirigia à repartição, em busca de solução para algum problema fiscal - um pouco mais atraente do que o convencional.
Quando furiosa pelos seus frequentes rasgos de ciúme, a Laura pegava o Zé de jeito e, segundo os vizinhos mais próximos, fazia a madeira cantar, deixando o marido em verdadeira petição de miséria. No dia seguinte, lá ia o Zé pra repartição, mal disfarçando as equimoses e escoriações causadas pela pancadaria da véspera.
Pois foi numa dessas sessões de pugilato unilateral explícito, em plena crise de ciumeira, (tinha achado um número de telefone anotado num papel, dentro do bolso do paletó do Zé), que a Laura havia lhe acertado um potente direto de direita bem no meio do nariz.
Estancada a sangueira, restou na cara do Zé uma protuberância arroxeada e disforme, que não houve meio do nosso prezado funcionário público disfarçar. Dureza foi no dia seguinte aturar os olhares curiosos dos contribuintes que naquele dia visitaram a repartição. Pior ainda foi explicar aos colegas a razão daquele estrago todo em sua napa. Para todos eles, o Zé repetia a mesma história, mais ou menos assim: "Imagina que ontem queimou a lâmpada do terraço e quando fui entrar em casa, no escuro, tropeçei num vaso e acabei batendo o nariz no corrimão da escada. Vocês nem imaginam como a minha Lalitinha ficou triste quando viu o vaso quebrado. Justo o vaso que ela tinha o maior ciúme, ganhou da mãe, pouco antes da velha morrer..."

terça-feira, 23 de abril de 2013

Certo na hora errada

Aconteceu que numa fria manhã de julho o seu João, pai da Lúcia, morreu. Na verdade o óbito se dera na noite anterior, mas fui tirado da cama bem cedo por minha mãe, pra ir no velório do seu João. O certo é que antes de saber o que era velório - se eu tivesse uns seis anos era o máximo - minha preocupação mais premente é que bem no dia que eu estava quase aprendendo a assobiar, o seu João, pai da Lúcia, tinha que morrer...
Naquele tempo não existiam essas comodidades de hoje em dia, com velórios públicos em que a gente reencontra parentes de que nem lembrava mais. "Nossa, como cresceu a Regininha, filha da Lucinda, não? Até outro dia ainda chupava chupeta e agora, olha só que mulherão ela virou..." Ou então: "Lembra do Osmar, marido da Leninha?" "Lembro, faz um tempão que não vejo..." "Nem vai ver mais, morreu ano passado..."
E entre as constatações de como o tempo tem passado e quanta gente tem morrido ultimamente, o velório público acaba se tornando um encontro social, onde boa parte do tempo o defunto acaba se transformando num mero coadjuvante, desses bem secundários. Sem falar que os velórios públicos quase sempre ficam nas proximidades de uma bem sortida padaria, para onde onde se dirigem todos que desejam fazer uma boquinha (velar defunto de madrugada dá uma fome...) ou então chutar pra dentro um goró (de madrugada faz frio...).
Mas voltando ao velório do seu João, pai da Lúcia: naquele tempo, velório se fazia em casa mesmo. Era só recuar o sofá e a cristaleira da sala e tinha-se espaço suficiente pra colocar umas cadeiras ao redor do caixão, onde o finado passava a última noite em casa, ouvindo os comentários de como ele tinha sido uma boa pessoa.
Assim, quando na fria manhã de julho eu era praticamente arrastado pelas mãos por minha mãe, a primeira imagem que tive do velório do seu João foi o número de senhoras bem velhinhas, sentadas nas cadeiras, e no tamanho do nariz do seu João. Pareceu enorme, eu que conhecia o seu João de brincar com a Paulinha, uma das netas dele, nunca tinha reparado no tamanho do nariz do seu João.
Enquanto observava fixamente aquela enorme protuberância nasal, eu ia fazendo caras e bocas em inúmeras tentativas de conseguir emitir um assobio. A ideia fixa se apoderou do meu pensamento pois de toda a molecada da rua, eu era o único que ainda não sabia assobiar (!), fato que me deixava completamente desmoralizado perante os colegas. E assim prosseguia o velório do seu João, pai da Lúcia, com as velhinhas chorando e eu tentando assobiar enquanto olhava o nariz do morto.
Quando deu umas dez horas da manhã, começou uma movimentação do lado de fora do velório. Era o carro da funerária, que acabava de chegar, para transportar o féretro até o cemitério. Lembro como se fosse agora, vários homens colocando o caixão dentro do carro, no exato momento em que eu consegui, finalmente, soltar o mais longo, forte e afinado assobio da minha vida.
Foi um assobio tão estridente, vigoroso e pungente que a Lúcia, filha do seu João desviou o olhar do caixão do pai e olhando fixamente para mim, ainda que com expressão homicida, derramou duas grossas lágrimas de tristeza...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A passeata

Não sei a opinião de vocês, mas acho que escolher justo uma passeata de professores para paquerar é uma coisa, no mínimo, sui-generis. Até mesmo porque ali a maior reivindicação costuma ser de natureza salarial e tentar achar um bom partido, economicamente estável e financeiramente tranquilo não é das tarefas mais fáceis.
Mas fosse alguém fazer essas ponderações para a Dolores e ela já fechava a cara, achando que estavam de zoação com ela. Bem avançada nos quarenta, Dolores era o tipo de professora convicta não em termos de carreira, mas de que se ela tivesse que um dia se casar, teria necessariamente que ser com alguém da mesma profissão. Achava que tendo interesses em comum, um casal de professores teria tudo para conseguir afinidades em qualquer situação que a vida se lhes oferecesse.
Pois foi com um misto de euforia e ansiedade que Dolores recebeu o comunicado do seu sindicato, informando dia, local e horário que sua categoria se reuniria para marchar em passeata, dando início à campanha salarial do ano passado. Para Dolores, passeata era negócio sério: na véspera passou três horas no salão de beleza, retocando as raízes e pegando no pé da manicure para caprichar nas duas mãos.
No dia seguinte, se não foi a primeira a chegar, certamente Dolores estava entre elas. Cartaz de cartolina nas mãos, escrito com pincel atômico "Quero JÁ o que é meu!", Dolores acompanhava atenta a chegada da categoria para início da caminhada. Foi então que ela viu. Melhor dizendo, ela o viu: alto, cabelos começando a pratear, um pouco acima do peso - uma insignificância, segundo ela! - barba bem aparada, que lhe dava um certo ar "revolucionário".
Dolores não teve dúvida. Postou-se ao seu lado e entre o apitaço e gritos de "Professor unido, jamais será vencido!", terminou a passeata, se não íntima, pelo menos conversando e rindo muito com Vicente (esse o nome dele) e em menos de um mês já dividiam o mesmo espaço do pequeno apartamento da CDHU, adquirido por ela em um não sei quanto de prestações.
Foi uma época de imensa felicidade para Dolores. Saiam juntos ainda bem cedo, pois seus horários matutinos coincidiam, andando juntinhos como dois namorados adolescentes até o ponto de ônibus. Durante o dia, cada um ia para seu lado até o feliz reencontro à noite em seu ninho de amor.
Foi assim que Dolores e Vicente viveram praticamente um ano inteirinho. Coincidentemente, até a chegada do comunicado do sindicato, convocando os dois para nova campanha e novas passeatas. Aquilo que era uma fixação sentimental para Dolores, transformou-se num pesadelo. "E se ele conhecer outra pessoa, como é que eu fico?"
Dúvidas e incertezas aumentando, Dolores passou a ver-se como a última das mulheres, a um passo de ser abandonada por Vicente, atraído por uma sirigaita qualquer durante a passeata. Como as convicções políticas dele eram, digamos, mais firmes e objetivas que as dela, o ultimato foi lançado: "Vicente, se você for a essa passeata, não precisa mais voltar para casa!" Queria ver se ele teria coragem.
Acontece que ele teve, muito mais do que ela. Saiu de casa logo cedo, sem dizer nada. Dolores sentiu que sua intuição poderia estar certa e, movida pelo ciúme, decidiu ir escondida à passeata, só pra ver se suas suspeitas seriam confirmadas.
Dizem que a desconfiança vira combustível líquido na hora de se tentar apagar o fogo da suspeita. No meio daquele mar de cabeças, faixas, bandeiras e cartazes, Dolores viu. Viu e se recusou a acreditar. Aos risos, gritos e expressões da mais pura felicidade, Vicente caminhava, abraçadinho e trocando beijos nada discretos com... outro professor!
Até hoje ninguém sabe ao certo como ficou a vida de Dolores. Quem a viu pela última vez disse que ela estava colocando na caçamba de lixo do condomínio um cartaz de cartolina, bem desbotado, mas que onde ainda se lia, escrito com pincel atômico "Quero JÁ o que é meu!"...




domingo, 21 de abril de 2013

A magia do ovo frito

Dia desses, num jantar informal em família, conversava-se a respeito do quanto é valioso a gente ter ao menos alguns conhecimentos básicos de cozinha e uma certa familiaridade com os chamados dotes culinários. Desde a habilidade no preparo de pratos sofisticadíssimos e multi-elaborados, até o clássico "não saber nem ferver água", o assunto acaba sempre provocando as mais variadas opiniões e comentários, quase sempre descambando para a galhofa e gozação quando trazem à memória uma lambança ocorrida por ocasião de alguma festividade onde tudo precisava dar certo e não foi bem o que aconteceu.
"Como, você não sabe nem fazer um macarrãozinho básico?", pergunta a tia mais veterana para a jovem namorada do sobrinho, que toda sem graça admite que entre ela e o fogão não existe, por assim dizer, uma proximidade das mais amistosas.
A cunhada zelosa e previdente apregoa em voz alta que desde pequenos ela ensinou os seus filhos "a se virar" na cozinha, afinal nunca se sabe quando vai ser preciso acalmar uma barriga roncando de fome, ainda mais no meio da madrugada...
Com a variedade de fast foods atualmente existentes, saber preparar uma refeição rápida deixou de ser uma preocupação das mais prementes. Há um bom tempo que saber cozinhar entrou para a categoria dos hobbies, justificando assim o sucesso dos programas culinários na televisão, bem como a infinidade de cursos de todos os níveis a disputar a preferência dos interessados.
Este singelo comentário poderia terminar por aqui, não fosse a magia e um certo mistério que sempre me fascinou e que diz respeito ao preparo do ovo frito. Entendo que fritar um ovo equivale à prática de um certo ritual, com etapas bem definidas de execução.
A começar pela temperatura, tanto do ovo quanto do óleo,que devem acompanhar uma certa relação de equivalência em relação ao tamanho da frigideira. Quanto maior este utensílio, maior o cuidado a se ter em relação à quantidade de óleo, pois aumenta o risco do ovo "pipocar", caso a temperatura esteja por demais elevada. Esse risco triplica na hipótese do ovo achar-se demasiadamente refrigerado: o choque térmico provoca inevitavelmente o estouro da gema e a formação de bolhas igualmente explosivas da clara e bem na cara do culinarista menos atento.
O sal na medida certa é outra etapa essencial no processo. Existem as pitadas de dois, de três e de quatro dedos. Para mim a de dois dedos é a ideal, pura questão de gosto, geralmente aplicada tão somente sobre a gema inteira, ainda durante a fritura. 
E quanto ao ponto certo de textura? Duro ou mole? Bom salientar que estamos nos referindo à gema, certo?
Nada mais chato para o apreciador - como eu - de gema mole ouvir o fatídico "Ih, furou a gema!". Ovo frito com a gema mole, bem em cima de um arroz soltinho, cozido na hora, hummmm, eu sou dos que não resistem...
Meus caríssimos leitores: pode ser que vocês sequer sejam apreciadores de ovo frito. Afinal, não existe mesmo muito glamour em se dizer "Comi um ovo frito inesquecível!". Mas se você pensa como eu, que na hora da fome o negócio é se virar, fica aí a dica para quem, na hora da fome braba, ovo frito é um verdadeiro manjar dos deuses...


sexta-feira, 19 de abril de 2013

Se recomeça, está recomeçado!

Olha só como são as coisas: mal a gente dá uma piscada de olho e lá se foram quase três anos. Calma, prezado leitor ou leitora, que eu explico. Até parece que foi ontem, eu me surpreendi pensando na ideia de construir um blog, onde pudesse extravasar livremente aqueles pensamentos que a gente tem quando está sozinho, mas acaba ficando com uma baita vontade de compartilhar com alguém.
Da ideia ao início propriamente dito, foi uma fração de segundo. Vocês sabem como é quando se fica ansioso para ver logo a cara do recém-nascido, se é parecido com alguém conhecido, se puxou algum traço predominante do pai, da mãe, de alguma tia, enfim, ver a sua obra nascer e mostrar a cara ao mundo.
A proposta de colocar publicamente minhas ideias, impressões, conjecturas e opiniões a respeito dos assuntos que mais me sensibilizam sempre me pareceu atraente. Afinal, quando a gente se expressa a respeito de algo, além de definir sua posição ideológica, surge a possibilidade de estabelecermos algum tipo de relação com pessoas que pensam, se não da mesma forma, ao menos fica estabelecida algum tipo de afinidade. Isso, para mim, é algo bastante significativo, pois acredito que as pessoas precisam voltar a interagir entre si, deixando um pouco de lado o isolamento e o subjetivismo. Foi assim que brotou a ideia deste blog, há cerca de três anos atrás. Cheguei a postar mais de quinze vezes e, relendo aqueles textos, pude constatar como a informação, assim como as pessoas, também envelhece. Os assuntos que mais absorveram minha atenção na época, portanto merecedores de comentários, foram - pasmem! - o incêndio no serpentário do Butantã, os pedágios do Rodoanel e, obviamente, a Copa do Mundo, realizada na África do Sul. Hoje, com uma segura margem de tempo, posso perceber como esses assuntos já ficaram perdidos na poeira que permeia a longa e sinuosa estrada da nossa existência.
Como o próprio título propõe, no ComentadO você irá me encontrar do jeito que eu real e normalmente sou: às vezes ácido, outras eufórico e bem humorado, quase sempre cético ou um pouco superficial e, para as leitoras, um lado que eu não consigo esconder. Trata-se do meu lado - como diria? - galanteador, sobretudo para aquelas que tiverem sensibilidade suficiente para entender que eu sou apenas... um homem!
Convido vocês a caminharem ao meu lado nos momentos de divagação e reflexão, sem contudo esperarem por uma obra prima ou uma superação literária a cada publicação.
A propósito, lembro do atleta russo Sergei Bubka, campeoníssimo no salto com vara, que após bater o recorde mundial cerca de 40 vezes, foi vaiado numa final olímpica por não ter superado o recorde anterior, que diga-se de passagem era do próprio Bubka.
Assim, vamos com calma. Não será sempre que vocês me verão superar a minha marca anterior. Se não quiserem aplaudir, tudo bem. Vou ficar imensamente grato simplesmente em não ser vaiado...