segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A Copa padrão FIFA e o seu legado

Dia desses, por intermédio de um amigo cujo nome manterei evidentemente no mais absoluto sigilo, tive acesso a um secretíssimo dossiê da FIFA, onde se encontram relacionadas novas exigências e informações confidenciais a respeito de cada um dos doze estádios que receberão os jogos da próxima Copa do Mundo.

Fora a repercussão que o campeonato obterá em todo o planeta, para o brasileiro comum, aquele que irá pagar sabe-se lá quanto e até quando a conta com as obras e a organização do evento, o fato mais relevante será o famigerado "legado da Copa", usado abundantemente nos últimos dez anos como argumento político para viabilizar o torneio em terras brasilis.

Para cada estádio e sede, foram estipuladas rigorosas orientações e normas de procedimento, onde a entidade futebolística mundial procurou adequar ao máximo suas exigências, tornando-as compatíveis com o perfil da cidade e da população local. Assim, passo a relacionar o que o torcedor nacional ou estrangeiro irá encontrar em cada uma das sedes do Mundial, caso tenha a hipotética chance de adquirir um ingresso, por obra e graça do seu santo de plantão e devoção.

Manaus - Em plena selva amazônica, os torcedores deverão chegar e sair do estádio em barcos, canoas ou pirogas, a maioria provida de radares anti-tocos de profundidade, como medida preventiva aos habituais naufrágios que ocorrem com regularidade na região. Jacarés, piranhas e manifestações indígenas serão mantidos à distância, mediante uso de poderosos repelentes químicos de última geração.

Fortaleza - Torneiras deverão jorrar água de côco ou mineral geladinha, à escolha do torcedor, observando a temperatura ambiente e a posição incidente do sol nordestino durante as partidas. Inédita proteção anti-baratas será aplicada por meio de exibições de xaxado, que acontecerão na véspera e nos dias de jogos. Originais e confortáveis apoios para cabeça, com 1 metro de diâmetro cada, serão o grande legado para a torcida cearense assistir no futuro aos jogos dos times locais de sua preferência.

Natal - Para facilitar a circulação no estádio, sobretudo na hora da entrada, o acesso do torcedor será por meio de rampas de finíssima areia higienizada e, à semelhança do ambiente das dunas, mediante uso do popular meio de locomoção local, o esqui-bunda. O torcedor que não seja potiguar terá a opção de retornar ao seu país de origem por meio de foguetes e ônibus espaciais, que serão lançados rigorosamente um a cada 15 minutos do Terminal Barreira do Inferno.

Recife - Aqui o sol não será problema, com a distribuição gratuita de sombrinhas para abrigar os torcedores, que no final dos jogos poderá usar o equipamento para sair dançando frevo no caso de vitória da sua seleção. Alem da numeração em cada assento, cada torcedor terá direito a um enorme e feroz caranguejo, devidamente adestrado para tascar o ferrão na bunda de quem se arriscar a ocupar indevidamente lugar que não seja o previamente adquirido.

Salvador - Tem tudo para ser o mais confortável de todos os estádios, uma vez que os torcedores poderão assistir aos jogos deitados em redes e à sombra do seu coqueiro particular, adquirido juntamente com o ingresso. Presença já assegurada de baianas vendendo vatapá, acarejé e munguzá em tabuleiros circulantes até mesmo nas arquibancadas, aceitando o pagamento através de cartões de crédito ou débitos. Na entrada do estádio, mães-de-santo especialmente contratadas para esse fim, poderão jogar búzios e assim prever o resultado das partidas e as seleções com maiores chances de classificação e consequente conquista do título.

Cuiabá - Cidade musical rural por excelência, promoverá antes e no intervalo dos jogos shows com duplas sertanejas locais, que organizadamente permanecerão em filas de no máximo 500 metros, aguardando o momento de suas apresentações. Enquanto esperam a vez, alegrarão o ambiente com maviosos solos de berrante.

Brasília - A FIFA manifesta sua preocupação de que talvez não seja possível a realização de jogos nesta cidade. Existe uma clara e altíssima taxa de risco que isso ocorra, em função dos rumores de um possível roubo do próprio estádio - prática bastante comum por parte da perigosa população flutuante da capital, organizada em quadrilhas denominadas "partidos" e normalmente concentrada nas dependências da Câmara e no Senado. Por enquanto discute-se a aplicação de um plano B, que consistiria na devolução do valor dos ingressos já vendidos, condicionada à reintegração ao patrimônio público do dinheiro desviado mensalmente pelos membros do governo e da sua base de apoio ao longo da administração federal anterior.

Belo Horizonte - Será o único estádio da Copa a ter sua própria bola temática, a Queijuca, em formato de pão de queijo. Como sempre, os mineiros permanecem extremamente desconfiados e até o momento não revelaram nada dos seus preparativos. Portanto, seguem completamente desconhecidas e envoltas em denso mistério quais serão as atrações mineiras que ocorrerão durante a Copa, tornando-se impossível saber o que mais está sendo preparado para a população local e a visitante, além das porções de tropeirinho que serão vendidas nas imediações do Mineirão. 

Rio de Janeiro - A FIFA exigiu e o novo Maraca já está dotado de confortáveis assentos individuais com vidros à prova de balas perdidas e a presença vigilante da Guarda Nacional para assegurar proibição da perigosa torcida do Vasco aproximar-se a menos de 3 km do estádio. Apesar do forte aparato de fiscalização, será praticamente impossível controlar o jeito folgado dos cariocas, acostumados a olhar para cada turista estrangeiro e nele ver uma oportunidade de passar-lhe a perna, a fim de levantar um troco às custas do incauto visitante, por eles desdenhosamente chamados de "manés".

Curitiba - A capital das araucárias deverá promover a distribuição gratuita de partituras, para permitir que as torcidas visitantes entendam o dialeto e acompanhem a fala cantada da população local. Crachás de identificação serão providenciados e de uso obrigatório por parte de cada torcedor, uma vez que por um hábito secular o paranaense não fala com pessoas estranhas de jeito nenhum.

Porto Alegre - A arena será inteiramente provida de assentos dotados de churrasqueiras e encanamento de água quente para o preparo de uma bebida típica dos pampas, uma infusão marrom esverdeada chamada chimarrão. Em estágio final de montagem, o estádio contará com uma exclusiva arquibancada com assentos duplos e privativos, reservados especialmente para casais gays, além da ousadíssima e revolucionária "Rampa da Avalanche Todo Mundo Pelado". Garantem os gaúchos que para eles estes serão, sem dúvida, os dois maiores legados da Copa. 

São Paulo - Coerente com o seu tradicional bundamolismo, o governo estadual ainda não se manifestou publicamente, porém por exigência da FIFA, acha-se prevista em dias de jogos da Copa a presença de uma escolta armada feita pelas polícias civil e militar, para "tentar" garantir um mínimo de segurança ao torcedor, na chegada e posterior saída da zona Leste. Os torcedores que se envolverem em brigas ou confusões serão trancafiados em conteiners, provisoriamente transformados em celas de 30 metros quadrados e capacidade para até 150 detidos, com julgamento sumário e pena inicial prevista de ouvir ininterruptamente, por um mínimo de 48 horas, apresentações de rappers e funkeiros arregimentados junto às comunidades e conjuntos habitacionais invadidos da região. Postos móveis do IML serão estrategicamente instalados a cada 200 metros, a fim de facilitar e agilizar autópsias e o reconhecimento de corpos das vítimas baleadas durante a Copa naquela pitoresca e aprazível região da cidade.

Como se vê, tudo foi ou está sendo minuciosamente planejado para que este campeonato mundial de futebol entre para a história como "A Copa que parecia impossível". Há os que prefiram como slogan "A Copa com jeitinho brasileiro", mas estes já estão quase conformados de que serão voto vencido...

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Reinos e reinados...


Não sei bem se ouvi de alguém ou li em qualquer lugar, mas o fato é que o comentário era sobre o rei Edward VII da Inglaterra, que preferiu abdicar do trono para se casar com a americana Wallis Simpson, divorciada e plebéia até o último fio de cabelo. Aliás, esse episódio verídico, que sacudiu os bastidores da realeza britânica na primeira metade do século XX acabou recentemente se transformando em filme de sucesso. Uma história que fez na época muita mocinha casadoira suspirar de inveja e maldizer sua condição de encalhada. Quem deve ter gostado disso foi a Rainha Elisabeth II, essa mesma vovó do Príncipe William: com a renúncia de Edward, quem assumiu foi o Rei George VI, que ao morrer permitiu à jovem princesa sair do banco de reservas e sentar no trono.
Muitos e muitos séculos antes, também na Inglaterra, Shakespeare tomou para si a voz do rei na peça Ricardo III e fez com que Sua Majestade, um sujeito que semeou crueldade em tudo quanto é lugar que pisou, bradasse a plenos pulmões antes de ser derrotado na batalha de Bosworth, vencida pelo conde de Richmond: "Meu reino por um cavalo!".
Quis com isso fazer a galera acreditar que só perdeu a escaramuça porque estava a pé. Dá a impressão que já naquela época os caras arranjavam desculpas esfarrapadas pelos seus fracassos, antecedendo o que certos pilotos de Fórmula 1 fazem atualmente, botando a culpa no câmbio, nos pneus, na pista, no vento, etc.
Mas não tergiversemos. Tá certo que as situações foram bem diferentes entre si, mas servem para ilustrar como de repente o poder, a dominação e a riqueza passam para segundo plano quando um valor mais alto - ou interessante - se alevanta...
Nem pensar em colocar em discussão, por exemplo, o reinado de Momo. Ele sabe que seu mandato expira ao final dos quatro dias de Carnaval e por isso faz de tudo para aproveitar ao máximo cada momento e saborear as glórias de ser saudado e reverenciado por onde quer que passe. Fora a inveja de todos os súditos cuecas, que babam só de olhar a corte do monarca gorducho, formada em sua maioria por gostosíssimas mulatas.
E como atualmente esse negócio de reinado anda meio em baixa, sobram expressões desdenhosas por parte daqueles e daquelas que acham super legal dar uma de bacaninha, principalmente quando estão numa roda de conhecidos e querem impressionar. O garotão bombado e totalmente vazio de conteúdo é capaz de dizer: "Um pedaço do meu bilau por mais uns 100 cavalos no motor da minha barata!", referindo-se ao próprio carro.
A gatinha fútil e superficial, que tem no GPS da cabeça a rota de todos os shoppings da cidade, vai querer mostrar sua total indiferença pelo romantismo e desprezo pelo sexo oposto, detonando: "Muito babaca pro meu gosto. Onde já se viu entregar um trono assim, de bandeja? Ainda mais por causa de uma periguete qualquer... Aff!"
E assim caminha a humanidade, fazer o que...

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Que fase!...

Geralmente a vida do homem pode ser dimensionada em fases, todas elas bem distintas entre si. Assim, a fase que vai até os 10 anos é aquela onde o garoto sonha em ser um super-herói, com poderes mágicos e sobrenaturais para vencer todos os inimigos e monstros que lhe surjam pela frente. Geralmente o estímulo e subsídios provém dos seus próprios pais, isso quando tem a sorte de ter pai e mãe vivendo juntos pelo absurdo período de dez anos...
Dos 10 aos 20 anos, ele vive o sonho de ser alguém muito famoso, como por exemplo um jogador de futebol ou tocando numa banda de sucesso, com muitas fãs correndo atrás e pedindo autógrafos. Quando não consegue, é nessa fase que hamburguers, batata frita, refrigerante e quetais fazem estragos definitivos, seja em sua saúde, seja em sua personalidade.
Entre 20 e 30 anos, o rapaz quer mais é comer tudo que tenha duas pernas, principalmente quem usa shortinhos, microvestidos e sapato de saltão. Acredita que a droga e/ou a bebida podem ajudar no processo de conquista e com isso não entendem por que nem toda mulher não os ache irresistíveis.
A fase entre 30 e 40 é dedicada à sua consolidação econômico-financeira, onde o elemento busca definir-se profissionalmente, de maneira a ocupar postos de mando e comando, ainda que para isso tenha de valer-se de recursos nem sempre marcados pela ética e pela moral, justificando-se por trás do jargão "quem está na minha frente, eu atropelo!"
De 40 a 50, o cidadão passa a refletir se foi certo tudo o que fez até então, arrependendo-se por não ter aproveitado ou percebido as oportunidades que a vida colocou diante de si. Talvez por isso seja a faixa etária onde ocorram mais divórcios e se caracterize pela "busca do tempo perdido", pois sabe que já passou da metade do caminho e talvez não apareçam novas chances a serem aproveitadas.
O homem entre 50 e 60 anos é um reflexo de tudo aquilo que ele fez por sí próprio ao longo da vida. Se cuidou bem do seu corpo, terá menos problemas de saúde do que aquele que não se importou em cultivar bons hábitos. Se manteve uma boa relação familiar, terá mais estímulo e disposição para desfrutar de suas conquistas. Profissionalmente, terá de volta aquilo que plantou ou que deixou de plantar.
Após os 60 e até os 70 anos, a luta será contra as moléstias, das quais quem escapa pode ser considerado exceção. Problemas cardíacos, circulatórios, osteoarticulares, câncer, diabetes, todo um bando de urubús-doenças passa a fazer parte da rotina do cidadão, consumindo boa parte de seus rendimentos entre tratamentos, remédios e similares.
Depois dos 70 - e aí nem arrisco a prever as fases posteriores - é a fase da sobrevivência pura e simples. Raríssimos serão os motivos de alegria e os prazeres permitidos. A maior parte dos parentes e amigos de outrora já terão morrido ou tem paradeiro ignorado, a família já se desfez em busca de seus interesses individuais. O sujeito que conseguir passar por esta fase, terá sorte se conseguir reunir algumas boas almas que conduzam seu caixão até a última morada, definitiva, eterna...

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Recesso temporário

Muito a contragosto participo a vocês, que tão gentilmente me acompanham nesta página, que estarei temporariamente deixando de incluir novas postagens.
Trata-se de um procedimento destinado a dedicar-me exclusiva e intensivamente a um tratamento médico que no momento se fez necessário, a fim de obter resultados mais rápidos e consistentes.
Esclareço não se tratar de nenhuma moléstia com gravidade extrema, apenas necessito de um período de descanso mental que seja cumprido de maneira rigorosa, para que a terapia medicamentosa que desenvolvo em paralelo alcance maior efetividade.
Assim, recebam meu breve "até breve".
Um beijo nos seus corações...

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O inútil

Tá certo, meu caro leitor ou querida leitora, que se não fosse por ele você não estaria agora aqui, lendo estas modestas linhas. Mas também não precisavam exagerar, a ponto de ser algo que você tivesse que carregar consigo pela vida inteira, sendo que ele já se tornou obsoleto no próprio dia em que você nasceu. Ainda se a gente ao menos pudesse escolher o modelo e o estilo, como se faz ao decidir qual o tipo de tatuagem que combina e fica melhor em nossa pele, à espera do verão...
Mas não. Tirando alguns aspectos tridimensionais de design, largura e profundidade, todos são muito parecidos uns com os outros. A diferença só vai aparecer e ficar bem caracterizada depois de alguns meses, talvez anos, da vida do seu portador. Só aí é que se revela qual técnica e o grau de habilidade de quem o executou. Sim, pois há uma grande diferença nos que são produzidos, por exemplo, no agreste nordestino daqueles originários da zona sul do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Os primeiros tem o toque rústico e singelo de um produto tipicamente artesanal, feitos por mãos calejadas e sofridas, enquanto que estes últimos revelam todo o avanço e aparato tecnológico que os seus realizadores têm por trás de si.
Para algo que não é capaz de produzir nenhum som ou sinal, até que ele cumpre de forma correta o seu papel, bem pretensioso por sinal, que é o de querer sempre estar na frente e chegar primeiro em todo lugar ou ambiente frequentado por você. Devia mais era se colocar no seu modesto lugar e deixar de ser tão intruso, uma vez que até para praticar simples e corriqueiros hábitos diários de higiene, dependendo da forma física do seu portador, ele se mostra arredio e inacessível.
E embora seja tão inexpressivo, inútil e obscuro, ainda existem pessoas que só sabem e insistem em olhar para ele como se fosse o centro do universo. São essas mesmas criaturas, que querendo transforma-lo numa extensão de sua personalidade, insistem em adorná-lo com piercings, brincos e outros penduricalhos, tentando alterar alguma coisa em matéria de seu status ou sofisticar a sua aparência.
Mas nada disso muda a sua missão e o seu destino. Não importa quanto tempo demore, o certo é que ele irá para o túmulo juntamente com o seu dono. Ou dona, pois praticamente não existem diferenças entre umbigos masculinos ou femininos...

domingo, 2 de junho de 2013

O Bala Humana

Era verdadeiramente impossível conter o entusiasmo da garotada naquela tarde ensolarada de domingo. Também, pudera: desde a manhã do dia anterior o carro de som - na verdade uma camionete caindo aos pedaços com uma corneta de alto-falante em cima - anunciava aos quatro ventos a "sensacional matinée do Gran Circo do Biluca, no mais fabuloso espetáculo do planeta e atrações internacionais..."
Visto de fora, o Gran Circo não era tão grande assim e o estado geral de sua lona revelava que não andava muito bem das pernas se o assunto fossem as finanças. Um buraco aqui, outro remendo ali e a torcida geral da troupe era para que não chovesse na hora da função, o que sem dúvida reduziria em muito a expectativa de público.
O próprio Biluca, dono do circo, era um palhaço de certa idade, batalhando contra o alcoolismo e para manter de pé a tradição da família, que há cinco gerações estava na estrada e sofria com a decadência dessa que fora durante décadas a mais popular das diversões, sobretudo nas cidades do interior.
Contudo, um fato novo ocorrera e tudo levava a crer que agora o Gran Circo do Biluca estava no caminho certo para voltar aos seus dias de glória. Procurado por um argentino, também com tradição circense, o Biluca foi convencido de que com uma nova e surpreendente atração, tudo iria mudar para melhor. E foi assim que surgiu, tanto nos cartazes espalhados pelo bairro quanto na propaganda do carro de som, o fantástico e inédito número do "Canhão da Bala Humana, uma prova de coragem que poucos no mundo conseguiam realizar com tamanha perfeição..."
Assim, foi difícil para a meninada assistir a sequência de atrações da matinée domingueira, tal era a expectativa pelo grande momento de ver um homem - que coragem! - ser lançado a dezenas de metros de distância, unicamente pela força de um canhão. Mágico, equilibristas, cães amestrados, trapezistas e até mesmo os palhaços e seu calhambeque explosivo, todos terminaram seus números sob vaias. O que todo aquele público ali reunido queria ver era mesmo o Canhão da Bala Humana.
Finalmente, sob verdadeira ovação, chega o grande momento. Usando um uniforme vermelho um tanto quanto folgado, bastante parecido com o do Superman, porém com um capacete amarelo, adentra o picadeiro a figura magra do argentino, acompanhado de sua mulher e partner, a quem caberia a tarefa de efetuar o disparo.
Depois de dar alguns pulinhos, como se exercitando, o Bala Humana se instala no interior do canhão, não sem antes encenar uma inspeção se tudo estava de acordo com as suas determinações. A bandinha do circo atacou algo similar a uma música de suspense, o apresentador fez a habitual dramatização e ao rufar dos tambores, aconteceu o que todos ali esperavam ver.
Bem, não exatamente o que todos esperavam. O programado era que após o disparo, o Bala Humana voaria de um lado ao outro do picadeiro, agarraria a rede do trapezista e desceria por ela até o centro do palco. O que não estava no programa, talvez por ser a primeira vez que o número era executado naquele espaço, foi que houve um certo exagero na quantidade de explosivo colocada no canhão.
Por isso, logo após um forte estrondo e sob grossa nuvem de fumaça, o que toda a platéia viu foi o Bala Humana voando em altíssima velocidade tentar sem sucesso alcançar a rede, passar direto por ela e abrir um grande rombo na frágil lona do circo. Os espectadores que se encontravam na parte alta da arquibancada relatam que viram ainda o projétil humano sobrevoar os carrinhos de pipoca, amendoim e algodão doce do lado de fora do pavilhão e aterrisar de maneira pouco elegante e convencional sobre os muitos pés de mamona existentes nos fundos do terreno. Como as mamoneiras não foram suficientes para amortecer a queda, o Bala Humana ainda prosseguiu em sua trajetória até atingir as águas poluídas do córrego que por ali passa até hoje.
Na segunda-feira o assunto no bairro não poderia ser outro. Todos os que assistiram ao lamentável espetáculo acrescentavam um detalhe a mais, desde o começo do número até a retirada do pobre Bala Humana do córrego pela equipe do resgate e conduzido ao hospital especializado em fraturas. Felizmente a distância até o nosocômio não era muito grande...

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Sorte de apostador

Há um bom tempo o seu Manoel andava preocupado sobre o que iria fazer da vida depois que se aposentasse. Funcionário exemplar, na empresa desde o início das atividades, seu Manoel era o tipo boa gente, querido por todos, bem tiozão, papo alegre, que só tinha um ponto fraco: era viciado em corrida de cavalo.
De segunda a sexta-feira almoçava em menos de vinte minutos, só pra poder dedicar o resto de tempinho livre a analisar a página de turfe do jornal, visando identificar os favoritos e as barbadas. Quando chegava o fim de semana, caprichava no visual e lá ia ele, todo garboso e perfumado para a Cidade Jardim. Essa era a sua rotina aos sábados e domingos e, quando chegava ao trabalho na segunda-feira, era visível sua satisfação ao contar para todos da seção que havia acertado alguma dupla ou placê. 
Mas ultimamente o seu Manoel andava meio caladão, macambúzio, assombrado pelo fantasma da aposentadoria. Sabia que por melhor que fosse o benefício, não seria suficiente para manter o seu padrão financeiro. Seria obrigado a conter as despesas e deixar de fazer aquilo que mais gostava, que era apostar nos cavalinhos, como costumava carinhosamente dizer.
Mas enfim, o dia temido chegou. E lá foi o seu Manoel, acompanhado de um funcionario do Departamento Pessoal da empresa, fazer a homologação na sede do sindicato. Quem viu o seu Manoel saindo da empresa, conta que ele parecia estar sendo conduzido ao cadafalso, tamanha era a sua tristeza e abatimento.
Passados uns seis meses, eis que recebemos a visita do seu Manoel. Contou-nos que estava bem, levando a vida conforme podia e que agora estava se recuperando de um grande susto por que passara, assim que havia deixado a firma e sacado o seu Fundo de Garantia. Todos pensaram que ele tinha sido vítima de algum golpe ou problema de saúde, mas não fora isso que acontecera.
Aí nos disse o seu Manoel que dias depois de receber seus direitos trabalhistas, teve a ideia de vender laticínios no varejo. Comprou uma Kombi branca usada e ao menos uma vez por semana ia até a região do sul de Minas, ande lotava a perua de queijos e trazia para vender em São Paulo, tudo sem nota fiscal, é claro. Para a mercadoria não deteriorar, não perder tempo, nem gastar dinheiro com pedágios, mandou pintar uma cruz vermelha na porta da Kombi e, usando um avental e uma touca brancos, passava direto pelos vários postos de fiscalização, como se fosse uma ambulância transportando algum paciente para o hospital.
Tudo ia dando certo para o seu Manoel, até que um dia, logo depois de passar por um comando da Polícia Rodoviária, percebeu que atrás dele havia saído uma viatura, com sirene ligada e que, após alguns minutos de perseguição, fazia sinal para que ele parasse. Seu Manoel, nervoso, encostou a Kombi e querendo parecer honesto, foi logo dizendo para o policial:
- O senhor está certo, cumprindo a sua função e eu reconheço que estou em situação irregular. Portanto, o senhor pode fazer o que tem de ser feito, eu assumo todas as consequências. Quando se está errado, o melhor negócio é reconhecer logo...
O policial pega os documentos do seu Manoel, examina, dá uma volta ao redor da Kombi. Volta, olha fixamente para o seu Manoel e diz:
- Muito bem, meu amigo, hoje eu só vou te multar. Mas da próxima vez que você passar por aqui com essa ambulância sem sirene eu vou te multar e apreender o veículo, tá entendido?
Seu Manoel disse que deve ter respondido "sim" para dentro. Liberado pelo patrulheiro, voltou rapidinho para São Paulo. Ainda a tempo de pegar a programação turfística daquele sábado à tarde...

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O cambono e o corno


 - Por favor Sr. Murilo, sente-se aqui e me conte o que exatamente aconteceu... Foi assim, sentado diante do delegado de plantão que Murilo começou seu relato do episódio envolvendo ele próprio,  Anabela, sua esposa e Joaquinzão, cambono do Centro Espírita Caboclo Sete Folhas.
Há algum tempo que Murilo e Anabela vinha frequentando aquele estabelecimento espírita. Fascinado pela energia, vigor e vibração do ritual do candomblé, o casal não perdia uma única sessão do terreiro, dedicando à entidade que emprestava seu nome à casa a mais irrestrita confiança, fé e devoção. Pelo menos era isso que demonstravam, participando ativamente de todas as suas atividades, não importando o dia nem a hora que elas tivessem que acontecer. O entusiasmo do casal era visível por todos os frequentadores, sendo sempre os primeiros a chegar e os últimos a sair, além de exibirem as guias e colares mais bonitos, usarem as vestimentas rituais mais impecáveis e tornarem-se em pouco tempo os melhores contribuintes para a saúde financeira do centro.
Murilo sempre fora um homem bem apessoado, elegante, dono de  personalidade alegre e descontraída, que frequentemente faziam dele o mais simpático e visto como gente boa em qualquer reunião. Padrão econômico elevado e estabilizado, graças ao faro apurado para os negócios, bens materiais abundantes, a começar pelo moderníssimo sedan importado, que estacionava pomposamente defronte ao centro, Murilo chegara ao terreiro por sugestão de um amigo, mais por curiosidade do que por necessidade.
Todavia, a nota alta do casal era dada por Anabela, uma belíssima mulher de porte altivo, bonita e perfeita sob todos os aspectos, além de possuidora de dotes físicos verdadeiramente deslumbrantes. Não havia quem não sentisse admiração - e por que não dizer? - uma ponta de inveja de tantas evidências de sucesso e realização.
Dona Juvenília, a mentora espiritual da casa deixava bem clara sua simpatia pelo casal, tanto que na primeira oportunidade que teve, definiu que já era hora de Anabela deitar a camarinha, ou seja, ser iniciada no candomblé no rito mais conhecido como "fazer a cabeça", devidamente preparada para que o Inkice/Orixá passasse a habitar no Ori/mutuê (cabeça) da nova adepta.
Poupo os leitores dos detalhes, mas afianço que todos os procedimentos de iniciação foram realizados, culminando com a série de festejos e rituais dedicados à cada entidade e linhas de desenvolvimento mediúnico, ritualistico e doutrinário. O desfecho ocorreria em plena mata fechada, uma vez que a entidade revelada a Anabela como seu guia de cabeça pertencia à corrente de Oxossi, santo guerreiro e protetor da floresta.
No dia previsto, Murilo resolveu fazer uma surpresa à mulher e sem que ela soubesse lotou um helicóptero de pétalas de flores, que seriam jogadas do alto, no local da cerimônia. Tudo correu conforme planejado por Murilo, que recomendou ao piloto que chegasse num vôo baixo, a fim de que a surpresa fosse completa. Identificado o ponto, a máquina faria uma curva suave e aberta, fazendo sua aproximação final para o arremesso das flores.
Qual não foi a surpresa de Murilo ao sobrevoar a pequena clareira e se deparar com a sua mulher, completamente nua, nos braços de Joaquinzão, um mulato forte e despachado, que cumpria o papel de cambono, atendendo os pedidos e assessorando na comunicação as entidades que baixavam no terreiro. Dedicavam-se a uma prática não muito espiritual, antes pelo contrário, desfrutando da tranquilidade de estarem só os dois num lugar ermo e de difícil acesso. Alí tratava-se apenas de um homem e uma mulher, entregues aos prazeres do sexo, que separaram-se rapidamente ao pressentir o perigo que chegava rapidamente via aérea.
Diante desse quadro, Murilo não pestanejou. Pediu ao piloto nova aproximação e antes mesmo que a nave pousasse, pulou sobre o Joaquinzão, num espetacular salto de mais ou menos cinco metros de altura, atingindo-o na cabeça e nocauteando o desafeto com um certeiro golpe, digno de um astro de MMA.
Novamente poupo você, leitor, de pormenores relativos ao encaminhamento do Joaquinzão ao hospital, onde até hoje tenta se recuperar. Também omito propositadamente os trâmites referentes ao divórcio de Murilo e Anabela, que teria ocorrido bem antes se o Murilo tivesse desconfiado um mínimo que fosse da excessiva atenção dispensada por Joaquinzão à Anabela, semanas depois do casal ter começado a frequentar a casa do Caboclo Sete Folhas...

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Mancha na reputação


Quem reside fora da cidade de São Paulo talvez não conheça nem de ouvir falar. Trata-se de uma categoria profissional popularmente identificada pelo curioso epíteto de "marronzinho" e vinculada à Companhia de Engenharia de Tráfego. Sem nenhum julgamento ou crítica ao desempenho profissional da classe, cabe aos marronzinhos a tarefa de orientar, disciplinar e fiscalizar o caótico e enlouquecedor trânsito da metrópole. Há quem acuse os marronzinhos de hidrófobos, pois basta cair uma leve chuva sobre a cidade para eles desaparecerem como por encanto, deixando motoristas e pedestres órfãos de pai e mãe e entregues ao próprio azar. Pura maldade!
Agora, se entre os marronzinhos existe um que cumpre seu dever de maneira que eu diria quase espartana, pra não dizer religiosa, esse cara é o Gilberto. Pode até existir igual, mas eu até apostaria que ninguém na CET cumpre sua obrigação com tamanho desvelo e dedicação quanto o marronzinho Gilberto. Ele gosta tanto do que faz que chega ao extremo de se oferecer para cobrir a falta ou licença de algum colega de serviço que necessite ausentar-se do trabalho.
Tamanho zelo e dedicação profissional só não são maiores na vida do Gilberto quanto a alegria que ele sente em passar o reveillon na praia, levando flores para Iemanjá e cumprindo o ritual de pular as sete ondas, fazendo um pedido em cada pulo, ao mesmo tempo que saúda a virada do ano estourando uma champanhe.
No último dia do ano passado não foi diferente. De folga no serviço, lá foi o Gilberto rumo à Praia Grande cumprir alegremente o seu ritual. Hospedado num apartamento cedido por uma colega de trabalho, nosso amigo aproveitou o dia de praia como manda o figurino: tempo ajudando, deu pra pegar uma cor sob o sol, saborear várias brejas, matar uma caipirinha e na hora que bateu a fome, derrotar uma alentada porção de camarões fritos na hora ali no quiosque. Pra incrementar, Gilberto combinou o petisco com molho rosé e arrematou com água de côco bem gelada.
Assim, depois de um dia perfeito, caiu a tarde, em seguida a noite e Gilberto, após um banho reconfortante, além de devida e impecavelmente trajado de branco, juntou-se à massa humana que caminhava em direção à praia, a fim de saudar o novo ano prestes a começar. Música, fogos, brindes, muita alegria, contagem regressiva e... Feliz Ano Novo!
Gilberto, depois de abraçar e cumprimentar alegremente todas as pessoas ao seu redor, como de hábito dirigiu-se ao mar, para a entrega de flores e o ritual das sete ondas. Iemanjá aceitou a oferenda de bom grado e Gilberto esperou a chegada das marolas. Uma... Duas... Três... Na quarta, uma sensação estranha... Na quinta, uma dor abdominal muito forte, quase insuportável, semelhante a um espasmo... Na sexta, não deu pra aguentar e antes de pular a sétima onda, os camarões ao molho rosé, consumidos na praia, numa tarde de sol quente viraram os intestinos do Gilberto do avesso e não houve jeito de segurar o poderoso jato entérico, ali mesmo, sob as vistas da multidão. Não é muito difícil imaginar o que isso significou para a reputação de alguém até então vestido inteiramente de branco.
Ignora-se como essa história acabou chegando aos ouvidos e bocas da galera aqui da Vila, que costuma ficar reunida no boteco, bebericando umas brejas e falando da vida dos outros. O fato é que de vez em quando, alguém chega e pergunta: "Não vi mais o Gilberto. Alguém tem visto ele por aí ultimamente?" "Gilberto? Mas que Gilberto?" "O marronzinho, pô!" Geralmente seguem-se muitas risadas, qualquer que seja a conotação que venha a ser dada à resposta...

terça-feira, 21 de maio de 2013

Testemunha ocular


- Muito bom dia, ouvintes da rádio Veloz, a mais bem informada da cidade. Falando o repórter Plínio Junior em edição extraordinária do Plantão de Notícias, diretamente do cruzamento das ruas Abacateiros com Miosótis, na Vila São Tomé, onde uma aglomeração de aproximadamente 30 populares chamou a atenção da nossa reportagem e a sua rádio Veloz, como sempre em dia com a notícia, chega ao local a fim de apurar os fatos. Meu amigo, o senhor aí, de boné e blusa de lã marrom, o que está acontecendo por aqui?
- Olha moço, eu ainda não vi direito, sabe como é, eu tenho 83 anos, sofro de catarata, reumatismo, diabete... Agora mesmo eu estava voltando do posto de saúde, fui buscar meus remédios, mas não consegui achar todos, tá faltando o de...
- Muito obrigado pelas suas informações, mas vamos tentar ouvir aqui este jovem. Ele parece estar bem cansado e ofegante, dá a impressão que andou correndo de alguma coisa... O que foi que houve, jovem?
- Então, eu tava jogando bola com meus amigos ali na quadra e alguém deu um chutão pra cima e eu vim aqui correndo pra pegar a bola e agora a gente vai seguir no jogo...
- Perfeito, obrigado... Mas vamos falar com esta garota, que já estava no local falando ao celular quando aqui chegou a nossa reportagem. O que você viu por aqui, que está atraindo tanta gente neste local?
- Bom, eu vi tipo que o ônibus que eu ia pegar, tipo assim, passou com tudo, eu dei sinal mas ele tipo não parou e eu tava tipo assim falando com minha amiga que acho que vou tipo chegar atrasada na aula e...
- Certo, obrigado. Mas esta dona de casa que vem vindo ali deve ter alguma informação para nos dar. Senhora, eu percebi seu andar apressado, foi por causa de alguma coisa que aconteceu por aqui e que atraiu tanta gente nesta esquina?
- Olha, eu não sei dizer o que aconteceu, o senhor vai me desculpar, eu estou com o almoço atrasado e ainda tenho que levar as crianças para a escola...
- OK, a senhora não viu o que aconteceu, de qualquer forma agradecemos. Vamos colher a palavra desta respeitável idosa, que está olhando fixamente para o meio do cruzamento. Por favor, estou vendo que a senhora está olhando tão atenta para o meio da rua, pode dizer aos ouvintes da rádio Veloz o que aconteceu aqui, para atrair toda essa gente a esta hora do dia?
- Seu repórter, por enquanto não vi nada acontecendo, não senhor. Mas com todo esse povaréu ajuntado por aqui, essa agitação danada e a confusão do trânsito, é bem capaz de acontecer qualquer coisa mesmo. Eu mesma já vi cada uma nessa esquina, que contando ninguém acredita. Pro senhor ver, em 1963 meu falecido marido...
- Muito obrigado à simpática velhinha pela colaboração, cujo depoimento encerra esta reportagem. Este foi um boletim informativo em edição extraordinária da sua rádio Veloz, sempre atenta aos fatos que acabam virando notícia. Voltamos agora aos nossos estúdios...

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Bacalhoada à Portuguesa


Estava tudo certo pra ser um domingo super legal. E delicioso. Como o prato favorito do Arruda era bacalhoada, já na véspera tudo fora cuidadosamente planejado para que o almoço dominical fosse mais um daqueles imortalizados pelo prato que era a especialidade da Fatiminha, mulher do Arruda. Filha de portugueses, Fatiminha dominava como poucas a arte de preparar a autêntica bacalhoada à moda da terrinha.
Bem cedinho todos os ingredientes já se encontravam à sua disposição: batatas, cebolas, pimentões verdes, amarelos e vermelhos, tomates, azeitonas pretas, cheiro verde, azeite de oliva (português, é claro!) e o astro principal da festa, o bacalhau do Porto, em grossas postas devidamente demolhadas e dessalgadas de véspera.
O preparo da receita nunca fora segredo para a Fatiminha. Colocou o bacalhau para ferver em uma panela com água, a mesma que costumava reservar para preparar o arroz branco da guarnição. Após essa etapa, usou uma panela de barro para montar as camadas, primeiro com as batatas, em seguida o bacalhau, depois os pimentões, tomates, cebolas e as azeitonas. Salpicou o cheiro verde, regou com o azeite e levou ao fogo para apurar o sabor do bacalhau, faltando apenas o cozimento das batatas até elas amolecerem. O delicioso aroma já se espalhava pela casa, prenunciando uma refeição das mais saborosas.
Foi aí que se deu o improvável acontecimento daquela manhã domingueira. Um imperceptível vazamento de gás provoca uma formidável explosão, que reduz toda a cozinha a escombros. Abaixada a poeira, Fatiminha e Arruda se abraçam, ainda atônitos e assustadíssimos, porém dando graças por não terem sofrido sequer um arranhão. Foi uma questão de segundos, o casal tinha ido até a adega, a fim de escolherem juntos o vinho que iria acompanhar o prato principal do almoço.
Foi mesmo muita sorte terem escapado ilesos. E sorte também do simpático vira-latas da vizinha, que até no dia seguinte ainda lambia os beiços, deliciando-se com os bons pedaços do legítimo bacalhau do Porto que haviam chovido sobre sua casinha no quintal...

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Salve, George!


Conheci o Jorge quando ele tinha uns dez ou onze anos, mais ou menos a mesma idade que eu na época. Nossa amizade começou meio por acaso: a pelada na rua estava pra começar e a turma já tinha até escolhido os dois times quando viram que um lado estava com um jogador a mais do que o outro. Para o garoto magro e franzino que espiava de longe, encostado no muro, olhar tímido, bastou um gesto pra ele se aproximar, ansioso para entrar no jogo e se enturmar. Pude notar sua alegria e um esboço de sorriso quando eu falei: "O magrinho fica no nosso time!"
Quando acabou a pelada, cheguei perto do magrinho e perguntei o seu nome "Jorge", respondeu. "Mudei ontem pra cá. Posso vir jogar outras vezes com vocês?" "Claro, Jorge, a galera gostou do jeito que você toca fácil, vai ter sempre lugar pra você bater uma bolinha com a gente." "Legal, então." disse Jorge. "Também tô aprendendo a tocar guitarra, ganhei uma da minha avó! Se quiser, pode ir lá em casa escutar. Só que ainda não sou muito bom, mas garanto que vou ficar!", disse rindo.
E foi assim que eu e o Jorge nos tornamos grandes amigos. Eu diria que éramos quase inseparáveis e de tanto a gente andar junto e ser um pouco parecidos, tinha até quem pensasse que ele era meu irmão. Nossa amizade com o tempo se fortaleceu e conforme prometera, o Jorge levou a sério os estudos de música e acabou ficando o maior fera na guitarra. Dava gosto ouvir os riffs que ele tirava com extrema facilidade.
Um dia ele chegou lá em casa e me falou, meio chateado "Cara, tô mudando! Vou morar em outro país, acho que vai ser difícil a gente se trombar de novo, mas quero te dizer que você foi meu melhor amigo, você vai estar sempre aqui, ó..." e bateu no lado esquerdo do peito. Demos um abraço de irmãos, e nos despedimos, prometendo sempre mandar notícias um para o outro.
Jorge cumpriu sua promessa. Volta e meia postava fotos e mensagens pela internet, chegou a me ligar algumas vezes, dizendo que agora viajava muito porque tinha se tornado músico profissional. Fazia parte de uma banda que estava dando super certo, junto com uns carinhas muito legais e talentosos. Fiquei muito contente com o sucesso do Jorge e sua banda, acompanhando na medida do possível a sua carreira.
Nossos contatos foram ficando cada vez mais esparsos, até que um dia, ao pegar minha correspondência com o carteiro, recebi um pequeno estojo contendo um CD e uma carta, cujo remetente era o meu amigo Jorge. Comecei a ler ali mesmo, no portão e entre várias notícias sobre a carreira, ele contava sobre como sua vida tinha se transformado desde a época que a gente era garoto e jogava bola na rua. Pedia pra eu ouvir e dizer o que achava das quatro músicas que ele tinha gravado especialmente para mim no CD que tinha vindo junto com a carta. Dizia também que o João, o Paulo e o Ricardinho, seus parceiros na banda, sabendo da minha amizade com ele, também me mandavam abraços.
Entrei em casa, liguei o som e me deliciei com as músicas que o Jorge me mandara. Ouvi todas por diversas vezes, impressionado com aquele estilo até certo ponto místico de rock. Gostei muito, demais mesmo de "He comes the sun" e "My sweet Lord", embora minhas favoritas até hoje continuem sendo "While my guitar gently seeps" e "Something"...

terça-feira, 14 de maio de 2013

Cabeça de área


Não é por nada não, mas no futebol quem devia merecer e ser visto com um pouco mais de consideração é o zagueiro central. Antigamente a gente via a escalação de um time e sabia logo quem era o zagueiro central, figura predominante na defesa, que tinha no quarto zagueiro apenas um fiel ordenança, um ajudante sempre a postos para fazer a cobertura, caso algum atacante se metesse a besta de tentar entrar na área com a bola dominada. Aliás, essa é uma das prováveis hipóteses para o surgimento da endeusada tabelinha. Além do tranco salvador, via de regra era tarefa do zagueiro central a honrosa tarefa de levantar cada taça conquistada, pois nada mais imponente nessa hora do que o próprio zagueiro central também acumular as funções de capitão do time.
Com a evolução (?) tática do futebol, aumentou a correria em campo e com ela o temor do zagueiro central de ser superado na arrancada pelo atacante velocista, que pegando a bola no meio de campo, costuma disparar feito um raio contra a meta adversária, só parando depois de estufar as redes. Ou então depois de levar na boca uma cotovelada nem sempre bem disfarçada, cartão de visita só pra saber quem é que manda de verdade naquela região do campo.
Apesar de não desfrutar do mesmo prestígio dos meio-campistas e dos atacantes artilheiros, na maioria das vezes o bicho por vitória ou empate é garantido pelo zagueiro central. Um puxãozinho de camisa aqui, um totó na canela durante um escanteio ali, uma cusparada intimidadora na reposição de bola e assim vai o zagueiro levando sua vida sofrida, nem sempre recompensada à altura.
Porém, de todas as vicissitudes enfrentadas pelo zagueiro, a pior de todas ocorre quando uma falta é cometida defronte à grande área e cabe a ele a perigosa tarefa de ser o homem do meio na barreira. Tive vários amigos que desistiram da prática futebolística depois de levarem uma bolada na região onde só quem é homem sabe o quanto dói uma saudade. Bolada no saco provoca uma dor tão intensa que é capaz de levar o atleta a repensar a sua própria condição humana, de uma forma quase filosófica.
Como se vê, vida de zagueiro não é nada fácil. Assim, quando seu time entrar em campo, reserve um aplauso a mais para essa figura indevidamente menos valorizada. E dependendo do resultado do jogo, sinta-se à vontade para entre uma mordida no sanduíche de pernil e um gole na cerveja, comentar na saída do estádio: "Também, com uma zaga dessas, a gente tinha mesmo é que tomar no rabo..."

sábado, 11 de maio de 2013

A sobremesa


Essa é uma história do tempo em que a mulher não se sentia diminuída ou depreciada pelo fato de preparar uma refeição para o marido, numa demonstração de carinho e afeto. Por isso, não tem relação nenhuma com pessoas ou fatos reais da atualidade, onde servir um cafezinho é interpretado como atitude machista e dominadora, que segundo reza a cartilha feminista, nenhuma mulher moderna deve se submeter, sob pena de estar regredindo um século e meio na trajetória da emancipação feminina.
Começa com um pedido, dito na mais terna e suave entonação, uma simples sugestão, pronunciada sem a menor conotação de crítica ou animosidade por um marido à sua esposa: "Pô, Gracinha, bem que qualquer dia desses você podia fazer uma sobremesa legal pra gente, né?" Não era a primeira vez que Juvenal, o marido, dava esse toque pra mulher, que ouvia o pedido com seu costumeiro ar de enfado e distração. O que acontecia, na verdade, é que a Gracinha nunca teve a menor afinidade com os chamados dotes culinários, limitando seu repertório gastronômico ao simples do básico do trivial e olhe lá. Não passava um dia sem que cometesse algum deslize, fosse salgando demais o arroz, deixando o feijão queimar no fundo da panela ou errando feio no ponto do empadão ou de um singelo picadinho. O fato é que Gracinha e o fogão revelavam total incompatibilidade entre si e com isso quem pagava o pato era o pobre Juvenal, que acostumado desde criança aos quitutes da mãe, tinha que encarar cada gororoba que vou te contar... Embora tímida e delicadamente, vivia sugerindo à mulher que procurasse alguma forma de superar aquela aversão nutrida de maneira ostensiva para com a cozinha.
Por isso, no dia seguinte, logo ao chegar no trabalho, a primeira coisa que Gracinha fez foi procurar pela Edilene, confidente, amiga de fé e irmã camarada e ir logo expondo o problema: "Edi, já tô de saco cheio do Juvenal me pedir pra fazer uma sobremesa pra ele. Você me conhece e sabe que eu não tenho o menor talento pra essas coisas. Amiga, sei que você domina a arte, preciso de um help, qualquer receita serve!" Edilene pensou um pouco e já saiu com a solução pronta, na ponta da língua: "Vamos fazer melhor, Gra. O Juvenal não chega em casa às oito? Pois bem, a gente sai às seis, vamos pra sua casa, eu preparo uma receita que eu sei todo homem adora e você só tem que dizer que foi você quem fez..."
Se assim foi combinado, melhor ainda foi feito. Só que justamente naquele dia o Juvenal adiantou os relatórios, saiu mais cedo do escritório e chegou em casa bem antes do horário de costume. Chegou justo na hora que a Edilene dava os últimos retoques na decoração de um monumental brigadeirão, que de cara deixou o Juvenal com água na boca. Pra resumir, além da sobremesa a Edilene acabou preparando todo o jantar e fazendo companhia ao casal na refeição, servida como manda o figurino, com entrada, prato principal e naturalmente a sobremesa. Tudo acompanhado pelos elogios, comentários e sorrisos do Juvenal, muita conversa e a agora indisfarçável expressão de ciúme da Gracinha, percebendo algo estranho no ar.
Pouco mais, pouco menos de seis meses após esse insuspeito encontro, Gracinha chega em casa do trabalho, ar cansado e abatido, deixa-se cair no sofá, enquanto se desmancha em lágrimas e lança aos ares um rosário de imprecações. "Canalha! Bandida! Traidora! Cachorra! Usar um jantar pra seduzir o meu marido... Piranha! Ordinária! E a cadela ainda se dizia minha amiga..."
Longe dali, num confortável apartamento da zona sul, Edilene recebia Juvenal com abraços, muitos beijinhos e uma surpresa: "Amor, fiz a sua sobremesa favorita. Hoje teremos... tcharan,... brigadeirãooo!" Nem que tentasse por horas seguidas eu conseguiria aqui traduzir em palavras o brilho de felicidade no olhar do Juvenal...

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Haja estômago

Quando alguém diz "Eu não tenho estômago pra isso...", geralmente está se referindo a alguma coisa ou situação muito feia, desagradável ou repugnante. O primeiro sinal de que algo errado está acontecendo é aquela sensação de enjôo e de que tudo está revirando por dentro, querendo sair a qualquer custo o mais urgente possível, sob o risco de haver uma explosão. Às vezes a sensação é puramente psicológica e a expressão ganha o sentido figurado, mas você sente o desconforto de uma forma tão real e evidente que nada nem ninguém será capaz de demover você da ideia de que é o seu estômago quem está passando a comandar as ações.
Pois eu vou dizer uma coisa pra vocês: eu não tenho mais estômago para esse clima de terror e violência instalado por toda a região metropolitana de São Paulo, com a bandidagem tomando conta da vida das pessoas de uma forma antes nunca vista. Antigamente o risco era de quem precisava chegar tarde da noite em casa, vindo da escola ou do trabalho. Ruas escuras e desertas eram um convite para o ataque dos criminosos, preferencialmente contra pessoas que ostentassem algum bem de valor. Atualmente não existe hora que não ofereça perigo e iminente risco de vida.
Leis obsoletas, autoridades omissas e tolerantes, polícia mal remunerada e desmotivada, sistema carcerário em estado de penúria moral e material, completamente falido e sucateado, comandado por facções criminosas que mandam e desmandam, além da consciência da impunidade por parte de menores infratores, tudo conspira contra o cidadão comum e de bem, que cada vez mais sente-se inseguro e desprotegido, sem ter a quem recorrer.
Aí chega o insosso, insípido e inodoro governador do Estado, sinalizando com ridículos números de pesquisa alardeando que as taxas de criminalidade estão em declínio, que o número de latrocínios caiu em não sei quantos por cento, que os assassinatos por arma de fogo diminuíram tantos por cento, transformando vítimas e famílias em números e meros dados estatísticos, esquecendo de que para quem já está morto a pesquisa não tem mais a menor importância.
É por isso que quando digo que não tenho mais estômago, quero dizer que também não tenho mais cérebro, pulmões, fígado, pâncreas, intestinos, vesícula e tudo o mais que se enquadre no plano da musculatura lisa, uma vez que são os primeiros tecidos do corpo humano a se romper ou dilacerar, diante do impacto ou perfuração causados por qualquer tiro ou facada, venham eles de onde vierem...




sexta-feira, 3 de maio de 2013

Vamos a la playa...


Pode ser até que exista, mas eu não conheço ninguém que goste mais de praia do que a Lucinda. Vocês acreditam que ela é tão fanática por praia que a decoração do salão de beleza que ela montou é todinho decorado com temas litorâneos?
É um tanto de pôsters e painéis com imagens de estrelas do mar, de conchinhas, de ondas, de guarda-sóis e banhistas que chega até a confundir a vista, dando a impressão que o salão foi montado bem ao estilo pé na areia. Mesmo depois de sofrer três decepções amorosas seguidas, a Lucinda consegue programar sua depressão para durar até o começo do verão, quando a praia passa a ser sua grande razão de viver.
Quando diz que precisa comprar biquinis novos, a Lucinda nem pensa nas três gavetas repletas dessas graciosas peças de banho que ela guarda carinhosamente como lembrança de momentos felizes, alguns segundo ela inesquecíveis, vividos em verões passados.
Por essas e outras a Lucinda vibrou de alegria quando ouviu a moça do tempo dizer na TV que o tempo no fim de semana estaria perfeito para curtir uma praia. Mais contente ainda ela ficou quando suas melhores amigas, Lurdinha e Kelly, toparam passar um dia inteirinho na praia. Mas tem que chegar bem cedo e sair só quando escurecer, pra aproveitar bastante, determinou a Lucinda.
No sábado o salão da Lucinda funcionou até muito tarde atendendo todas as clientes habituais, que era para deixar o domingo inteirinho livre, só pra curtir a praia junto com as amigas. Pra não perder tempo pela manhã, Lucinda convenceu Lurdinha e Kelly a dormirem na sua casa.
O domingo ainda nem havia clareado direito e lá estavam as três, no ponto de ônibus, antecipando ansiosas como o dia seria maravilhoso. Já no ônibus repassavam o conteúdo das sacolas de praia, checklistando item por item: toalhas, esteira dobrável, óleos, cremes e soluções protetoras, óculos de sol, celular, documentos, dinheiro... bem, tudo aquilo que as mulheres acham indispensável levar numa sacola de praia.
Chegaram, escolheram um lugar estratégico perto de um quiosque - a bebida não pode ficar longe - e do essencial chuveiro de água doce. Devidamente instaladas, as amigas só pensavam em curtir o sol, o mar e quem sabe algum bonitão dando sopa.
Manhã perfeita, mar perfeito, praia perfeita. Depois de um rápido mergulho, as três amigas, já relaxadas pela terceira caipirinha, dormitavam sob o sol do fim da manhã quando se ouviu, à distância, um alarido muito parecido com o de uma torcida comemorando um gol. O alarido foi aumentando, aumentando e quando Lucinda ergue o corpo para ver do que se tratava, sente uma espécie de choque, enxerga um clarão que vai escurecendo, até ela não ver mais nada.
Aos poucos ela começa a perceber, primeiro umas imagens desfocadas, depois outras mais nítidas e finalmente descobre que está deitada num leito de hospital, sendo atendida por uma enfermeira de meia idade que lhe aplica uma injeção intravenosa.
O que me aconteceu, pergunta Lucinda. A enfermeira, com cara cansada e de poucos amigos, responde que Lucinda foi vítima de um arrastão na praia e trazida ao hospital pelo Resgate, com suspeita de traumatismo craniano.
Mas a que hora foi isso, onde estão minhas amigas Lurdinha e Kelly, elas estão bem? pergunta Lucinda. Devem estar, pois já vieram visitar você pelo menos umas quatro vezes cada uma. Me visitar? Quatro vezes? Como assim, a gente estava juntas na praia hoje de manhã? pergunta Lucinda aflita e sem entender direito o que estava se passando com ela.
Moça, fique calma, você está aqui internada há dois meses, em estado de coma profundo. Teve muita sorte em ser atendida pela melhor equipe de neurocirurgiões deste hospital e provavelmente ainda ficará algumas semanas por aqui, em tratamento e observação. Com licença, se precisar de alguma coisa é só chamar.
Lucinda, ainda confusa e sob o impacto da revelação, olha ora para o teto do quarto, ora para as nuvens brancas que passam pela janela. E antes mesmo de se dar conta de qual seria seu real estado de saúde, só consegue pensar: dois meses e eu aqui, sabe-se lá até quando. É, não tem jeito, parece que este verão está mesmo perdido...

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Reflexão sobre o não prestar


Para determinadas mulheres, homem nenhum presta até o momento em que elas se veem na condição de   precisar abrir um vidro de conserva, consertar a resistência do chuveiro, trocar o pneu furado ou matar uma barata mais atrevida, que inadvertidamente e em hora imprópria tenha resolvido dar um rolê pela casa. Confesso que percebo uma forte conotação machista nesta velha e surrada analogia, mesmo porque a mulher dos dias atuais já superou esses obstáculos naturais à condição feminina e hoje são capazes até mesmo de facilmente trocar um botijão de gás, caso isso se faça absolutamente necessário.
Geralmente o homem "imprestável" é aquele que também esquece datas importantes para elas, como o aniversário de sete meses de namoro, o dia da semana em que deram o primeiro beijo ou de que cor era a blusa que ela usava no dia em que foram pela terceira vez ao cinema.
Também é agraciado com o nefando adjetivo o sujeito que insiste em ver futebol tomando uma cervejinha nas noites de quarta e tardes de domingo, de continuar amigo da galera da facul e insistir em gostar de heavy metal, de passear com o cachorro e de comer lasanha - a melhor do mundo! - na casa da mãe.
Igualmente não presta todo homem que ainda curte uma partida de Fifa, Call of Duty ou Battlefield, de matar de vez em quando a saudade do skate ou da velha prancha de surf, ambos ultimamente meio esquecidos num canto qualquer da garagem. O homem que não presta de verdade não tem fixação doentia com a aparência, com as roupas da moda e com a boa forma física. Também não presta aquele que costuma usar as manhãs de sábado para dar um trato no carro ou então jogar uma pelada de futebol society com os amigos.
Aceitar rachar uma conta, ter uma amiga bonita e gostosa no trabalho e não reparar no novo corte de cabelo ou na cor do esmalte são atributos fatais que levam o cidadão imediata e diretamente a ser excomungado e mandado para as mais obscuras profundezas do não-prestismo.
É claro que aqui neste breve e reduzido espaço eu não teria a menor condição de esgotar todas as nuances do assunto. Mas de uma coisa estou certo: geralmente o homem que não presta é um cara feliz. Mesmo que não se dê conta disso...

terça-feira, 30 de abril de 2013

Mesa redonda

- Pois vou te dizer uma coisa: pra mim foi o Tiziu e não tem conversa...
- Ah, meu, que nada. Na minha opinião ninguém conseguiu superar o Jeremias.
- Cara, tu tá ficando louco? Um meia que só sabia tocar de lado, nunca vi ele armando nenhuma jogada de perigo no ataque! Vivia ali na intermediária, só esperando a bola chegar nele, um folgado isso sim...
- Quer me dizer que o Tiziu fez grande coisa a mais?
- O quê? Tu já esqueceu de quem foi o cruzamento pro gol de cabeça do Alemão, na decisão do festival do Barreiro que o Vila ganhou? Do Tiziu, claro, ponta bom, dos antigos, que pegava na bola e partia pra cima dos beques, sem medo de levar sarrafada...
- Um ciscador, nada mais do que isso! Jogava mais pra torcida do que para o time.
- Tem que ver que quando o Tiziu jogava a torcida lotava o barranco do lado da fábrica. Parecia até jogo de time federado...
- Mas tem que ver que nessa época o Vila tinha mesmo um timaço: Japonês; Véio, Alemão e Neguinho; Chulé, Branco e Valdomiro; Tremoço, Jura, Boqueira e Tiziu. Saudade dessa época, viu...
- Não vai dizer que já esqueceu aquela escalação que tinha o Maurão do Frango; Joaquim, Borso e Lelinho; Arroto, Cunha e Jeremias; Landinho, Maurão da Lena, Paricido e Cuiabá. Tá lembrado agora?  
- É, mas tem que ver que foi na época do Turcão na presidência, né? Do total arrecadado em cada ponto de aposta o Turcão repassava cinco por cento pro Vila. Aí, com dinheiro em caixa era fácil ele arrumar jogador bom, conservar o campo, comprar uniforme novo, alugar caminhão pra levar a torcida quando o jogo do Vila era fora...
- Até quando o Turcão vai ficar em cana?
- Sei não, dizem que ele arrumou umas treta lá na cadeia, o negócio sujou pro lado dele...
- Aí é foda, né meu? Mas continuo achando que o Tiziu foi o melhor que já vestiu a camisa do Vila. Raça, garra, brigador, encarnou o espírito do legítimo vilaroseano. É assim mesmo que se fala?
- Acho que é, mas insisto que o Jeremias foi muito mais craque... Ô Juca, desce mais duas?
- E mais daquele tira gosto, beleza Juca?...

O churras do Ariovaldo

O Ariovaldo não se contentava em simplesmente organizar uma churrascada. Para ele, churrasco tinha que ser assim uma espécie de ritual, planejado com antecedência, nos mínimos detalhes, para que nenhum pormenor fosse esquecido, tudo corresse nos conformes e que os convidados dele se lembrassem por muito tempo. Por isso, logo depois de completar nove anos de casamento com a Elisinha, o Ariovaldo não falava outra coisa que não fosse na churrascada que iria organizar pra comemorar, dali a um ano, sua década de felicidade ao lado da sua querida esposa.
Conhecendo bem o marido, Elisinha não se surpreendeu quando o Ariovaldo lhe contou dos planos de construir um coberto ali, bem ao ao lado da lavanderia, criando um espaço para mesas, cadeiras e conforto dos felizardos que pela graça dos céus fossem participar do memorável acontecimento.
Se assim foi pensado, assim foi feito: cinco meses depois de muita bagunça e sujeira no quintal, além de inúmeras discussões com o pedreiro mestre da obra, finalmente ficou pronto o ambiente sonhado pelo Ariovaldo para festejar o décimo aniversário de seu casamento com a Elisinha.
Com várias semanas de antecedência a relação dos convidados já estava pronta, bem como a das compras essenciais para garantir o perfeito abastecimento durante todo o transcurso da festividade. Carnes e saladas de todos os tipos e para todos os gostos, saladas, muito chopp, cerveja, águas e refrigerantes, enfim comida e bebida à vontade, pra ninguém botar defeito, nem sair reclamando pelo menor motivo que fosse.
E foi assim, num misto de elegria e ansiedade, finalmente chegou a tão esperada semana do churras do Ariovaldo. Tudo combinado de véspera com o Betão, proprietário da Casa de Carnes Roberto, há mais de cinco anos tradicional fornecedor da matéria prima essencial de todos os churras promovidos pelo Ariovaldo. Divido o sucesso dos meus churras aos cortes precisos, que só o Betão é capaz de fazer, jactanciava-se o sorridente Ariovaldo, querendo parecer humilde.
Chega o grande dia e depois de uma noite passada praticamente em claro, repassando pela milionésima vez cada minúcia, logo cedinho Ariovaldo se dirige ao estabelecimento comercial do Betão, a fim de ele próprio fazer a retirada e o transporte da preciosa mercadoria. Sai em silêncio, para não acordar a Elisinha, afinal hoje será um dia muito cansativo para ela.
Qual não é o espanto do Ariovaldo ao dar de cara com as portas do açougue ainda cerradas, num claro sinal de que algo não batia com os planos tão exaustivamente traçados. Olhou o relógio, conferiu o horário, viu que estava dentro do combinado. Primeiro Ariovaldo chamou. Depois bateu, bateu e bateu com força na porta de aço e nada. Quase meia hora se passa e nem um rumor, por menor que fosse saia do interior do estabelecimento.
Diante do esforço infrutífero, acometido do mais absoluto desespero, Ariovaldo retorna à sua casa, para juntamente com Elisinha traçar um eventual plano B. Entrou correndo, chamando pela mulher. Foi até o quarto, depois no banheiro, olhou na lavanderai, no quintal e, por último, no coberto recém construído. Nada da Elisinha, em lugar algum da casa.
Já à beira de um colapso, Ariovaldo repara num papel escrito à mão, colado com durex no batente da porta da cozinha. Ariovaldo se aproxima e lê, escrito com a melhor caligrafia da Elisinha:
Ari, eu e o Betão resolvemos ser felizes juntos. Embora seja do ramo, ele não me vê como um simples pedaço de carne. Adeus. Eli...

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Na fila de espera


Essa gripe H1N1 tem dado mesmo o que falar. A começar pelo seu "nome de guerra" - gripe suína - que desde a primeira epidemia tem deixado todo mundo, e os palmeirenses em particular, com a cabeça mais quente do que a febre provocada pela moléstia.
Como sempre, é nesta época do ano que a gripe vira uma ameaça mais real do que a provocada pela bandidagem que campeia solta por todo o Estado de São Paulo. "Está sob controle!", brada o governador, exibindo como sempre o seu costumeiro maço de folhas de pesquisa, diante de mais um problema que afeta a população completamente desprotegida e sem ter a quem recorrer. Também na esteira de mais um surto, rola na mídia a famigerada campanha de vacinação promovida pelo governo federal, cuja eficácia está bem longe de ser aferida e comprovada.
A exemplo do que ocorre na maior parte dos países africanos, desprovidos de praticamente todo e qualquer meio civilizado de sobrevivência, aqui essas doenças típicas do subdesenvolvimento, como gripe, dengue, cólera e febres em geral só não matam mais do que bala de "revórver", como na letra do imortal samba "Tiro ao Árvaro", de Adoniram Barbosa.
É, meus amigos, a coisa por aqui tá feia. E como quem tem, tem medo, lá fui eu dia desses, rumo ao posto de saúde aqui do bairro, levar minha senilidade para ser protegida da famigerada gripe da estação. No posto tive a alegria de reencontrar algumas pessoas que ao longo deste e de boa parte do século passado foram meus vizinhos, amigos e conhecidos. Os cabelos brancos e as rugas exibidas pela maioria eram como documentos originais, atestando que embora a gente seja de uma época com bem menos recursos do que agora, até que fomos bem fortes e resistentes para continuarmos sobrevivendo até agora.
Não sei se na campanha do ano que vem teremos a alegria de nos reencontrarmos todos, ali no posto de saúde. Digo isso porque entre um sorriso aqui, um abraço ali, pude perceber bem na minha frente na fila de espera uma senhora bem avançada em anos, que sofria bastante com o acesso de tosse que a acometia. Não falei nada, mas pelo estado da senhorinha e o roncar acompanhado de chiados de sua tosse incontrolável, fiquei com a impressão que essa dose de vacina que ela iria tomar dentro de instantes, pode ter chegado até ela tarde demais...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Feitos um para o outro

Eu se que você deve estar de saco cheio, de tanto que já ouviu aquela arenga do "feitos um para o outro, como Tristão e Isolda, Mickey e Minnie, Bonnie e Clyde, Romeu e Julieta e até mesmo Adão e Eva, pra não alongar demais o exemplo. Mas não tenho como evitar a mesmice e deixar de dizer que Beto e Malú nasceram mesmo, um para o outro.
Desde a chamada tenra idade, Beto e Malú nunca estiveram separados mais que um quarteirão e por mais de quinze dias, aí contando as férias escolares que cada um passava na casa das respectivos avós. Andavam e estavam em todos os lugares sempre tão juntos que era praticamente impossível olhar para um sem ver o outro. Iam à escola, a passeios, festinhas, cinema, praticavam esportes, faziam os deveres de casa e tudo mais que um casal de crianças, depois adolescentes e, mais recentemente, jovens pudessem fazer juntos.
Nunca ninguém viu nem ouviu dizer que Beto e Malú um dia tivessem tido qualquer tipo de desentendimento ou que um ficara de cara virada para o outro. Parecia até que se tratava de um corpo só ocupando o mesmo lugar no espaço, na figura de duas pessoas.
Juntos prestaram o vestibular e juntos vibraram ao se verem aprovados para o mesmo curso, o de Odontologia. Houve até quem dissesse que a escolha da profissão fora uma decisão conjunta de ambos, que queriam para sempre cuidar dos dentes um do outro, preservando assim, mutuamente, ambos os sorrisos...
Vou pular os entrementes e ir direto ao ponto: tanta convivência, parceria, afinidades e identificação só podia mesmo resultar no óbvio. Praticamente o bairro inteiro esteve presente no casamento de Beto e Malú, uma vez que todos os presentes eram, simultaneamente, amigos, colegas e conhecidos dos dois. Festão animado, lua de mel e o feliz início da vida conjugal para o inseparável casal.
E assim caminhou a vida. Passados menos de três meses, o choque da notícia que abalaria toda aquela coletividade próxima de Beto e Malú. Sim, era verdade, o casal estava se separando e tudo levava a crer que era mesmo pra valer. "Mas como, o Beto e a Malú? Separados? Não acredito!..."
Pois é, até hoje ainda tem gente que não acredita. E permaneceria incrédula, se soubesse o verdadeiro motivo do rompimento do casal. Dizem que as paredes tem ouvidos e se tem ouvidos, teriam ouvido o seguinte diálogo entre Beto e Malú, fator desencadeante do único e definitivo atrito entre ambos:
- Malú, me distraí e acabei esquecendo de comprar...
- Hum, uma pena mas não vou te dar...
- Por que isso, Malú? Me dá, vai...
- Não adianta, Beto, nem você me pedindo de joelhos.
- Mas Malú, o que te custa, eu só estou te pedindo um...
- Chega, Beto! Não vou dar e pronto! Larga de ser chato!
- Malú, você já tá me enchendo! Dá logo aí e para de frescura. Se não me der eu vou aí e te tomo nem que seja à força...
- Não dou não, Beto! Só tenho um e deixei pra fumar antes de ir pra cama...

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O nariz do servidor

O Zé da Laura era o protótipo do sujeito metódico. Funcionário público de carreira, sempre na mesma função no mesmo posto fiscal, o Zé afligia-se cada vez que olhava no calendário e calculava o quanto ainda estaria faltando para a sua aposentadoria.
Afligia-se porque não concebia a ideia de fazer outra coisa na vida que não fosse exercer suas funções de rotina, que consistiam em separar e bater carimbos em papéis na repartição e arquivar pilhas de processos no arquivo morto. Para o Zé, não existia nada mais nobre do que dedicar-se à uma atividade, que no seu entender "era de um valor inestimável para a coletividade". Para dar mais ênfase, esticava de propósito o "inestimáááável", tentando assim atribuir-lhe um valor que o engrandecesse perante o interlocutor. Era assim que o Zé via o seu próprio trabalho como funcionário público.
Por isso o Zé amava o que fazia, mais do que tudo. Minto: mais do que tudo, não. Tinha a Laura, sua mulher, com quem o Zé há mais de quinze anos dividia sua rotina conjugal,chamando-a pelo carinhoso apelido de Lalitinha, apesar do avantajado porte e estatura da mulher, que ao caminhar ao lado do Zé transformava-o num nanico, quase anão. Cada braço de Lalitinha possuia o diâmetro semelhante ao de um queijo parmesão inteiro, ou dependendo do ângulo de observação, uma peça de mortadela bolonhesa.
O rosto de Lalitinha, então, parecia saído de uma tela de Picasso, no melhor de sua fase cubista, ou seja, nada guardava proporção com nada, tamanha a forma implacável com que o tempo esculpira tal figura.
Embora o Zé, com seu perfil de mulato inzoneiro não fosse nada provido da chamada beleza máscula natural, Laura tinha o Zé na conta de um George Clooney caboclo, tamanho o ciúme que a avantajada esposa sentia pelo frágil marido. E na mesma proporção que alimentava seu ciúme, raro era o dia que o Zé não precisava ficar jurando por tudo quanto é santo que não tinha entrado nenhuma funcionária nova na repartição, nem ele tivera que atender alguma contribuinte - era assim que o Zé identificava toda pessoa que se dirigia à repartição, em busca de solução para algum problema fiscal - um pouco mais atraente do que o convencional.
Quando furiosa pelos seus frequentes rasgos de ciúme, a Laura pegava o Zé de jeito e, segundo os vizinhos mais próximos, fazia a madeira cantar, deixando o marido em verdadeira petição de miséria. No dia seguinte, lá ia o Zé pra repartição, mal disfarçando as equimoses e escoriações causadas pela pancadaria da véspera.
Pois foi numa dessas sessões de pugilato unilateral explícito, em plena crise de ciumeira, (tinha achado um número de telefone anotado num papel, dentro do bolso do paletó do Zé), que a Laura havia lhe acertado um potente direto de direita bem no meio do nariz.
Estancada a sangueira, restou na cara do Zé uma protuberância arroxeada e disforme, que não houve meio do nosso prezado funcionário público disfarçar. Dureza foi no dia seguinte aturar os olhares curiosos dos contribuintes que naquele dia visitaram a repartição. Pior ainda foi explicar aos colegas a razão daquele estrago todo em sua napa. Para todos eles, o Zé repetia a mesma história, mais ou menos assim: "Imagina que ontem queimou a lâmpada do terraço e quando fui entrar em casa, no escuro, tropeçei num vaso e acabei batendo o nariz no corrimão da escada. Vocês nem imaginam como a minha Lalitinha ficou triste quando viu o vaso quebrado. Justo o vaso que ela tinha o maior ciúme, ganhou da mãe, pouco antes da velha morrer..."

terça-feira, 23 de abril de 2013

Certo na hora errada

Aconteceu que numa fria manhã de julho o seu João, pai da Lúcia, morreu. Na verdade o óbito se dera na noite anterior, mas fui tirado da cama bem cedo por minha mãe, pra ir no velório do seu João. O certo é que antes de saber o que era velório - se eu tivesse uns seis anos era o máximo - minha preocupação mais premente é que bem no dia que eu estava quase aprendendo a assobiar, o seu João, pai da Lúcia, tinha que morrer...
Naquele tempo não existiam essas comodidades de hoje em dia, com velórios públicos em que a gente reencontra parentes de que nem lembrava mais. "Nossa, como cresceu a Regininha, filha da Lucinda, não? Até outro dia ainda chupava chupeta e agora, olha só que mulherão ela virou..." Ou então: "Lembra do Osmar, marido da Leninha?" "Lembro, faz um tempão que não vejo..." "Nem vai ver mais, morreu ano passado..."
E entre as constatações de como o tempo tem passado e quanta gente tem morrido ultimamente, o velório público acaba se tornando um encontro social, onde boa parte do tempo o defunto acaba se transformando num mero coadjuvante, desses bem secundários. Sem falar que os velórios públicos quase sempre ficam nas proximidades de uma bem sortida padaria, para onde onde se dirigem todos que desejam fazer uma boquinha (velar defunto de madrugada dá uma fome...) ou então chutar pra dentro um goró (de madrugada faz frio...).
Mas voltando ao velório do seu João, pai da Lúcia: naquele tempo, velório se fazia em casa mesmo. Era só recuar o sofá e a cristaleira da sala e tinha-se espaço suficiente pra colocar umas cadeiras ao redor do caixão, onde o finado passava a última noite em casa, ouvindo os comentários de como ele tinha sido uma boa pessoa.
Assim, quando na fria manhã de julho eu era praticamente arrastado pelas mãos por minha mãe, a primeira imagem que tive do velório do seu João foi o número de senhoras bem velhinhas, sentadas nas cadeiras, e no tamanho do nariz do seu João. Pareceu enorme, eu que conhecia o seu João de brincar com a Paulinha, uma das netas dele, nunca tinha reparado no tamanho do nariz do seu João.
Enquanto observava fixamente aquela enorme protuberância nasal, eu ia fazendo caras e bocas em inúmeras tentativas de conseguir emitir um assobio. A ideia fixa se apoderou do meu pensamento pois de toda a molecada da rua, eu era o único que ainda não sabia assobiar (!), fato que me deixava completamente desmoralizado perante os colegas. E assim prosseguia o velório do seu João, pai da Lúcia, com as velhinhas chorando e eu tentando assobiar enquanto olhava o nariz do morto.
Quando deu umas dez horas da manhã, começou uma movimentação do lado de fora do velório. Era o carro da funerária, que acabava de chegar, para transportar o féretro até o cemitério. Lembro como se fosse agora, vários homens colocando o caixão dentro do carro, no exato momento em que eu consegui, finalmente, soltar o mais longo, forte e afinado assobio da minha vida.
Foi um assobio tão estridente, vigoroso e pungente que a Lúcia, filha do seu João desviou o olhar do caixão do pai e olhando fixamente para mim, ainda que com expressão homicida, derramou duas grossas lágrimas de tristeza...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A passeata

Não sei a opinião de vocês, mas acho que escolher justo uma passeata de professores para paquerar é uma coisa, no mínimo, sui-generis. Até mesmo porque ali a maior reivindicação costuma ser de natureza salarial e tentar achar um bom partido, economicamente estável e financeiramente tranquilo não é das tarefas mais fáceis.
Mas fosse alguém fazer essas ponderações para a Dolores e ela já fechava a cara, achando que estavam de zoação com ela. Bem avançada nos quarenta, Dolores era o tipo de professora convicta não em termos de carreira, mas de que se ela tivesse que um dia se casar, teria necessariamente que ser com alguém da mesma profissão. Achava que tendo interesses em comum, um casal de professores teria tudo para conseguir afinidades em qualquer situação que a vida se lhes oferecesse.
Pois foi com um misto de euforia e ansiedade que Dolores recebeu o comunicado do seu sindicato, informando dia, local e horário que sua categoria se reuniria para marchar em passeata, dando início à campanha salarial do ano passado. Para Dolores, passeata era negócio sério: na véspera passou três horas no salão de beleza, retocando as raízes e pegando no pé da manicure para caprichar nas duas mãos.
No dia seguinte, se não foi a primeira a chegar, certamente Dolores estava entre elas. Cartaz de cartolina nas mãos, escrito com pincel atômico "Quero JÁ o que é meu!", Dolores acompanhava atenta a chegada da categoria para início da caminhada. Foi então que ela viu. Melhor dizendo, ela o viu: alto, cabelos começando a pratear, um pouco acima do peso - uma insignificância, segundo ela! - barba bem aparada, que lhe dava um certo ar "revolucionário".
Dolores não teve dúvida. Postou-se ao seu lado e entre o apitaço e gritos de "Professor unido, jamais será vencido!", terminou a passeata, se não íntima, pelo menos conversando e rindo muito com Vicente (esse o nome dele) e em menos de um mês já dividiam o mesmo espaço do pequeno apartamento da CDHU, adquirido por ela em um não sei quanto de prestações.
Foi uma época de imensa felicidade para Dolores. Saiam juntos ainda bem cedo, pois seus horários matutinos coincidiam, andando juntinhos como dois namorados adolescentes até o ponto de ônibus. Durante o dia, cada um ia para seu lado até o feliz reencontro à noite em seu ninho de amor.
Foi assim que Dolores e Vicente viveram praticamente um ano inteirinho. Coincidentemente, até a chegada do comunicado do sindicato, convocando os dois para nova campanha e novas passeatas. Aquilo que era uma fixação sentimental para Dolores, transformou-se num pesadelo. "E se ele conhecer outra pessoa, como é que eu fico?"
Dúvidas e incertezas aumentando, Dolores passou a ver-se como a última das mulheres, a um passo de ser abandonada por Vicente, atraído por uma sirigaita qualquer durante a passeata. Como as convicções políticas dele eram, digamos, mais firmes e objetivas que as dela, o ultimato foi lançado: "Vicente, se você for a essa passeata, não precisa mais voltar para casa!" Queria ver se ele teria coragem.
Acontece que ele teve, muito mais do que ela. Saiu de casa logo cedo, sem dizer nada. Dolores sentiu que sua intuição poderia estar certa e, movida pelo ciúme, decidiu ir escondida à passeata, só pra ver se suas suspeitas seriam confirmadas.
Dizem que a desconfiança vira combustível líquido na hora de se tentar apagar o fogo da suspeita. No meio daquele mar de cabeças, faixas, bandeiras e cartazes, Dolores viu. Viu e se recusou a acreditar. Aos risos, gritos e expressões da mais pura felicidade, Vicente caminhava, abraçadinho e trocando beijos nada discretos com... outro professor!
Até hoje ninguém sabe ao certo como ficou a vida de Dolores. Quem a viu pela última vez disse que ela estava colocando na caçamba de lixo do condomínio um cartaz de cartolina, bem desbotado, mas que onde ainda se lia, escrito com pincel atômico "Quero JÁ o que é meu!"...




domingo, 21 de abril de 2013

A magia do ovo frito

Dia desses, num jantar informal em família, conversava-se a respeito do quanto é valioso a gente ter ao menos alguns conhecimentos básicos de cozinha e uma certa familiaridade com os chamados dotes culinários. Desde a habilidade no preparo de pratos sofisticadíssimos e multi-elaborados, até o clássico "não saber nem ferver água", o assunto acaba sempre provocando as mais variadas opiniões e comentários, quase sempre descambando para a galhofa e gozação quando trazem à memória uma lambança ocorrida por ocasião de alguma festividade onde tudo precisava dar certo e não foi bem o que aconteceu.
"Como, você não sabe nem fazer um macarrãozinho básico?", pergunta a tia mais veterana para a jovem namorada do sobrinho, que toda sem graça admite que entre ela e o fogão não existe, por assim dizer, uma proximidade das mais amistosas.
A cunhada zelosa e previdente apregoa em voz alta que desde pequenos ela ensinou os seus filhos "a se virar" na cozinha, afinal nunca se sabe quando vai ser preciso acalmar uma barriga roncando de fome, ainda mais no meio da madrugada...
Com a variedade de fast foods atualmente existentes, saber preparar uma refeição rápida deixou de ser uma preocupação das mais prementes. Há um bom tempo que saber cozinhar entrou para a categoria dos hobbies, justificando assim o sucesso dos programas culinários na televisão, bem como a infinidade de cursos de todos os níveis a disputar a preferência dos interessados.
Este singelo comentário poderia terminar por aqui, não fosse a magia e um certo mistério que sempre me fascinou e que diz respeito ao preparo do ovo frito. Entendo que fritar um ovo equivale à prática de um certo ritual, com etapas bem definidas de execução.
A começar pela temperatura, tanto do ovo quanto do óleo,que devem acompanhar uma certa relação de equivalência em relação ao tamanho da frigideira. Quanto maior este utensílio, maior o cuidado a se ter em relação à quantidade de óleo, pois aumenta o risco do ovo "pipocar", caso a temperatura esteja por demais elevada. Esse risco triplica na hipótese do ovo achar-se demasiadamente refrigerado: o choque térmico provoca inevitavelmente o estouro da gema e a formação de bolhas igualmente explosivas da clara e bem na cara do culinarista menos atento.
O sal na medida certa é outra etapa essencial no processo. Existem as pitadas de dois, de três e de quatro dedos. Para mim a de dois dedos é a ideal, pura questão de gosto, geralmente aplicada tão somente sobre a gema inteira, ainda durante a fritura. 
E quanto ao ponto certo de textura? Duro ou mole? Bom salientar que estamos nos referindo à gema, certo?
Nada mais chato para o apreciador - como eu - de gema mole ouvir o fatídico "Ih, furou a gema!". Ovo frito com a gema mole, bem em cima de um arroz soltinho, cozido na hora, hummmm, eu sou dos que não resistem...
Meus caríssimos leitores: pode ser que vocês sequer sejam apreciadores de ovo frito. Afinal, não existe mesmo muito glamour em se dizer "Comi um ovo frito inesquecível!". Mas se você pensa como eu, que na hora da fome o negócio é se virar, fica aí a dica para quem, na hora da fome braba, ovo frito é um verdadeiro manjar dos deuses...


sexta-feira, 19 de abril de 2013

Se recomeça, está recomeçado!

Olha só como são as coisas: mal a gente dá uma piscada de olho e lá se foram quase três anos. Calma, prezado leitor ou leitora, que eu explico. Até parece que foi ontem, eu me surpreendi pensando na ideia de construir um blog, onde pudesse extravasar livremente aqueles pensamentos que a gente tem quando está sozinho, mas acaba ficando com uma baita vontade de compartilhar com alguém.
Da ideia ao início propriamente dito, foi uma fração de segundo. Vocês sabem como é quando se fica ansioso para ver logo a cara do recém-nascido, se é parecido com alguém conhecido, se puxou algum traço predominante do pai, da mãe, de alguma tia, enfim, ver a sua obra nascer e mostrar a cara ao mundo.
A proposta de colocar publicamente minhas ideias, impressões, conjecturas e opiniões a respeito dos assuntos que mais me sensibilizam sempre me pareceu atraente. Afinal, quando a gente se expressa a respeito de algo, além de definir sua posição ideológica, surge a possibilidade de estabelecermos algum tipo de relação com pessoas que pensam, se não da mesma forma, ao menos fica estabelecida algum tipo de afinidade. Isso, para mim, é algo bastante significativo, pois acredito que as pessoas precisam voltar a interagir entre si, deixando um pouco de lado o isolamento e o subjetivismo. Foi assim que brotou a ideia deste blog, há cerca de três anos atrás. Cheguei a postar mais de quinze vezes e, relendo aqueles textos, pude constatar como a informação, assim como as pessoas, também envelhece. Os assuntos que mais absorveram minha atenção na época, portanto merecedores de comentários, foram - pasmem! - o incêndio no serpentário do Butantã, os pedágios do Rodoanel e, obviamente, a Copa do Mundo, realizada na África do Sul. Hoje, com uma segura margem de tempo, posso perceber como esses assuntos já ficaram perdidos na poeira que permeia a longa e sinuosa estrada da nossa existência.
Como o próprio título propõe, no ComentadO você irá me encontrar do jeito que eu real e normalmente sou: às vezes ácido, outras eufórico e bem humorado, quase sempre cético ou um pouco superficial e, para as leitoras, um lado que eu não consigo esconder. Trata-se do meu lado - como diria? - galanteador, sobretudo para aquelas que tiverem sensibilidade suficiente para entender que eu sou apenas... um homem!
Convido vocês a caminharem ao meu lado nos momentos de divagação e reflexão, sem contudo esperarem por uma obra prima ou uma superação literária a cada publicação.
A propósito, lembro do atleta russo Sergei Bubka, campeoníssimo no salto com vara, que após bater o recorde mundial cerca de 40 vezes, foi vaiado numa final olímpica por não ter superado o recorde anterior, que diga-se de passagem era do próprio Bubka.
Assim, vamos com calma. Não será sempre que vocês me verão superar a minha marca anterior. Se não quiserem aplaudir, tudo bem. Vou ficar imensamente grato simplesmente em não ser vaiado...