quinta-feira, 24 de março de 2022

O DESFILE

 Aninha nunca foi muito chegada em posar para fotografias. Até naquelas, tiradas nas festinhas infantis pra serem guardadas como lembrança - e que depois de algum tempo ninguém lembra mais onde guardou - o que se via era uma menina séria, de semblante hostil e carregado, deixando revelada de maneira inequivoca sua contrariedade e insatisfação diante daquele ritual, digamos assim...fotográfico !

. "Dá um sorrisinho pra tia Orieta, Aninha !"..."O fio Pasquale quer te ver alegre, Aninha!". Mas qual o quê, para cada pedido que lhe era feito, maior o descontentamento revelado na expressão da garota. Festejos escolares, passeios com as amigas, formaturas, férias, em todas as ocasiões registradas em fotos, o que mais chamava a atenção de todos era o olhar indevassável e contrariado de Aninha. 

Embora tivesse um invejável currículo acadêmico, a idade adulta chegou para Aninha, com discretíssimas ofertas e  oportunidades de trabalho. Nem mesmo a ótima aparência e beleza física, valorizada pela sua privilegiada ascendência européia, asseguravam alguma vantagem quando a disputa colocava Aninha frente a frente com as demais concorrentes às vagas que surgiam. 

Afetado pelo interminável período da pandemia do início dos anos 20, o mercado de trabalho resumia-se a esporádicos eventos de natureza promocional, envolvendo  contratos de prestação temporária de serviços. Previsto desde o início do ano, o desfile da linha verão dos maiôs Overmarine representava pra muita gente a diferença entre um ano bem remunerado e um de vacas magras. 

Assim, quando recebeu a confirmação de que seu nome estava entre as candidatas selecionadas para o desfile, Aninha não cabia em si de alegria, quase sem saber como controlar sua emoção, misto de euforia, alívio e felicidade. Por isso, até chegar o dia do tão sonhado e esperado evento, o pensamento mais recorrente de Aninha era que suas contas estariam todas em dia, seu nome estaria em evidência no mercado e que, na certa, novos convites para trabalhos não iriam demorar pra aparecer. 

Finalmente chega o grande dia ! E no meio da azáfama tumultuada que é a preparação para um desfile de moda, um pensamento súbito tomou conta da mente de Aninha : "Será que vou precisar ficar sorrindo durante meu trajeto na passarela ?!? Ai meu Deus, vai ter uma cacetada de gente fotografando, filmando, gravando, focando meu rosto, mostrando minha cara ! E eu não suporto isso, de ficar com cara de besta, mostrando os dentes !"...

Com isso, caro leitor, o estrago já estava feito. Dividindo o espaço do camarim com todas as outras modelos e um batalhão de profissionas da produção, a tensão começou a tomar conta de Aninha. E enquanto era maquiada, penteada, ajeitada , arrumada e vestida com o seu maiô Overmarine Top Style, Aninha em voz baixa, quase sussurante, arriscou-se a chamar a principal produtora e perguntar-lhe : " Durante o desfile a gente vai ser obrigada a ficar sorrindo ? "

E sem sequer desviar os olhos e a atenção do que estava fazendo, a produtora respondeu assim para Aninha : "Minha filha, você faz o que quiser com a sua carinha ! Aqui o que interessa é o restante do seu corpo e o que isso é capaz de fazer pra ajudar a vender mais essa droga de maiô!"

Não era bem o que Aninha esperava ouvir mas até que ficou mais conformada. Seu sorriso secreto e misterioso, bem como e expressão de absoluta contrariedade estariam, ao menos por enquanto, preservados de olhares mais curiosos...

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