quarta-feira, 24 de abril de 2013

O nariz do servidor

O Zé da Laura era o protótipo do sujeito metódico. Funcionário público de carreira, sempre na mesma função no mesmo posto fiscal, o Zé afligia-se cada vez que olhava no calendário e calculava o quanto ainda estaria faltando para a sua aposentadoria.
Afligia-se porque não concebia a ideia de fazer outra coisa na vida que não fosse exercer suas funções de rotina, que consistiam em separar e bater carimbos em papéis na repartição e arquivar pilhas de processos no arquivo morto. Para o Zé, não existia nada mais nobre do que dedicar-se à uma atividade, que no seu entender "era de um valor inestimável para a coletividade". Para dar mais ênfase, esticava de propósito o "inestimáááável", tentando assim atribuir-lhe um valor que o engrandecesse perante o interlocutor. Era assim que o Zé via o seu próprio trabalho como funcionário público.
Por isso o Zé amava o que fazia, mais do que tudo. Minto: mais do que tudo, não. Tinha a Laura, sua mulher, com quem o Zé há mais de quinze anos dividia sua rotina conjugal,chamando-a pelo carinhoso apelido de Lalitinha, apesar do avantajado porte e estatura da mulher, que ao caminhar ao lado do Zé transformava-o num nanico, quase anão. Cada braço de Lalitinha possuia o diâmetro semelhante ao de um queijo parmesão inteiro, ou dependendo do ângulo de observação, uma peça de mortadela bolonhesa.
O rosto de Lalitinha, então, parecia saído de uma tela de Picasso, no melhor de sua fase cubista, ou seja, nada guardava proporção com nada, tamanha a forma implacável com que o tempo esculpira tal figura.
Embora o Zé, com seu perfil de mulato inzoneiro não fosse nada provido da chamada beleza máscula natural, Laura tinha o Zé na conta de um George Clooney caboclo, tamanho o ciúme que a avantajada esposa sentia pelo frágil marido. E na mesma proporção que alimentava seu ciúme, raro era o dia que o Zé não precisava ficar jurando por tudo quanto é santo que não tinha entrado nenhuma funcionária nova na repartição, nem ele tivera que atender alguma contribuinte - era assim que o Zé identificava toda pessoa que se dirigia à repartição, em busca de solução para algum problema fiscal - um pouco mais atraente do que o convencional.
Quando furiosa pelos seus frequentes rasgos de ciúme, a Laura pegava o Zé de jeito e, segundo os vizinhos mais próximos, fazia a madeira cantar, deixando o marido em verdadeira petição de miséria. No dia seguinte, lá ia o Zé pra repartição, mal disfarçando as equimoses e escoriações causadas pela pancadaria da véspera.
Pois foi numa dessas sessões de pugilato unilateral explícito, em plena crise de ciumeira, (tinha achado um número de telefone anotado num papel, dentro do bolso do paletó do Zé), que a Laura havia lhe acertado um potente direto de direita bem no meio do nariz.
Estancada a sangueira, restou na cara do Zé uma protuberância arroxeada e disforme, que não houve meio do nosso prezado funcionário público disfarçar. Dureza foi no dia seguinte aturar os olhares curiosos dos contribuintes que naquele dia visitaram a repartição. Pior ainda foi explicar aos colegas a razão daquele estrago todo em sua napa. Para todos eles, o Zé repetia a mesma história, mais ou menos assim: "Imagina que ontem queimou a lâmpada do terraço e quando fui entrar em casa, no escuro, tropeçei num vaso e acabei batendo o nariz no corrimão da escada. Vocês nem imaginam como a minha Lalitinha ficou triste quando viu o vaso quebrado. Justo o vaso que ela tinha o maior ciúme, ganhou da mãe, pouco antes da velha morrer..."

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