terça-feira, 23 de abril de 2013

Certo na hora errada

Aconteceu que numa fria manhã de julho o seu João, pai da Lúcia, morreu. Na verdade o óbito se dera na noite anterior, mas fui tirado da cama bem cedo por minha mãe, pra ir no velório do seu João. O certo é que antes de saber o que era velório - se eu tivesse uns seis anos era o máximo - minha preocupação mais premente é que bem no dia que eu estava quase aprendendo a assobiar, o seu João, pai da Lúcia, tinha que morrer...
Naquele tempo não existiam essas comodidades de hoje em dia, com velórios públicos em que a gente reencontra parentes de que nem lembrava mais. "Nossa, como cresceu a Regininha, filha da Lucinda, não? Até outro dia ainda chupava chupeta e agora, olha só que mulherão ela virou..." Ou então: "Lembra do Osmar, marido da Leninha?" "Lembro, faz um tempão que não vejo..." "Nem vai ver mais, morreu ano passado..."
E entre as constatações de como o tempo tem passado e quanta gente tem morrido ultimamente, o velório público acaba se tornando um encontro social, onde boa parte do tempo o defunto acaba se transformando num mero coadjuvante, desses bem secundários. Sem falar que os velórios públicos quase sempre ficam nas proximidades de uma bem sortida padaria, para onde onde se dirigem todos que desejam fazer uma boquinha (velar defunto de madrugada dá uma fome...) ou então chutar pra dentro um goró (de madrugada faz frio...).
Mas voltando ao velório do seu João, pai da Lúcia: naquele tempo, velório se fazia em casa mesmo. Era só recuar o sofá e a cristaleira da sala e tinha-se espaço suficiente pra colocar umas cadeiras ao redor do caixão, onde o finado passava a última noite em casa, ouvindo os comentários de como ele tinha sido uma boa pessoa.
Assim, quando na fria manhã de julho eu era praticamente arrastado pelas mãos por minha mãe, a primeira imagem que tive do velório do seu João foi o número de senhoras bem velhinhas, sentadas nas cadeiras, e no tamanho do nariz do seu João. Pareceu enorme, eu que conhecia o seu João de brincar com a Paulinha, uma das netas dele, nunca tinha reparado no tamanho do nariz do seu João.
Enquanto observava fixamente aquela enorme protuberância nasal, eu ia fazendo caras e bocas em inúmeras tentativas de conseguir emitir um assobio. A ideia fixa se apoderou do meu pensamento pois de toda a molecada da rua, eu era o único que ainda não sabia assobiar (!), fato que me deixava completamente desmoralizado perante os colegas. E assim prosseguia o velório do seu João, pai da Lúcia, com as velhinhas chorando e eu tentando assobiar enquanto olhava o nariz do morto.
Quando deu umas dez horas da manhã, começou uma movimentação do lado de fora do velório. Era o carro da funerária, que acabava de chegar, para transportar o féretro até o cemitério. Lembro como se fosse agora, vários homens colocando o caixão dentro do carro, no exato momento em que eu consegui, finalmente, soltar o mais longo, forte e afinado assobio da minha vida.
Foi um assobio tão estridente, vigoroso e pungente que a Lúcia, filha do seu João desviou o olhar do caixão do pai e olhando fixamente para mim, ainda que com expressão homicida, derramou duas grossas lágrimas de tristeza...

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